capitulo 4

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4
Mansão Val Hall, Nova Orleans
Sede do décimo entre os doze covens das ValquíriasÀs vezes, Nikolai Wroth realmente
detestava as suas cunhadas.
Expirou com força enquanto acompanhava sua Noiva, conhecida como Myst, a
Desejada, pela imensa varanda da frente do seu antigo lar. Mal tinham conseguido
alcançar os degraus da frente, quando o primeiro guincho ensurdecedor se fez
ouvir.
Ele não se mostrou surpreso, pois sabia que a sua mera presença vampiresca constituía uma
provocação naquele ninho de Valquírias.
Embora fosse um Abstêmio, Nikolai era tão odiado quanto os vampiros da Horda – assassinos
naturais, facção que guerreava contra as Valquírias desde os primeiros dias do Lore. Como se não
bastasse o ato de aniquilar os seres que pertenciam à espécie da sua Noiva, os vampiros da Horda muitas
vezes as aprisionavam e se fartavam de beber, todas as noites, o maravilhoso sangue delas.
Nikolai compreendia o ódio que elas sentiam da Horda. Na condição de Abstêmio, ele também
compartilhava o sentimento e travara terríveis batalhas contra eles desde que fora transformado em
vampiro. Mas isso pouco importava.
Ouviu-se um novo grito, seguido por outro guincho muito mais apavorante. Nikolai ainda não se
habituara por completo aos berros lancinantes de suas cunhadas. Elas adoravam gritar. No entanto,
mesmo caladas, ele conhecera a raiva delas, motivada pela sua simples presença, pressentida no ar.
Afinal de contas, as Valquírias produziam relâmpagos com as próprias emoções. Naquele instante, por
exemplo, o pátio diante dele mais parecia um campo minado, com raios que explodiam a cada passo.
As muitas barras de cobre, espetadas no terreno para servir de para-raios, não davam conta de um
ataque daquela amplitude. Os carvalhos antiquíssimos que rodeavam a propriedade eram rasgados pelos
raios e iluminados pelos relâmpagos, e nada mais lhes restava fazer senão erguer para o céu sua lástima
em forma de fumaça mais densa que a névoa.
Será que alguma coisa no mundo cheirava mais estranho do que musgo queimado?
Ele balançou a cabeça e olhou para o céu, mas não viu as estrelas acima. Não… A visão delas estava
bloqueada pelos espectros que as Valquírias contratavam para circundar e proteger a propriedade. Os
demônios fantasmagóricos urravam para ele e se divertiam com isso.
Nikolai não tinha paciência com eles. Cerca de um mês antes, quando tentara se teletransportar para
Val Hall com o intuito de reconquistar Myst, eles o tinham agarrado e lançado tão longe que acabara
parando em outro vilarejo. Nada conseguia penetrar ali e ultrapassar a guarda cerrada que ofereciam.
Considerando os espectros, relâmpagos, os gritos pavorosos e a fumaça densa, não era de espantar
que as outras criaturas do Lore temessem Val Hall quase tanto quanto temiam as próprias Valquírias. A
lembrança de que sua lindíssima esposa tinha sido criada nesse ambiente louco sempre o deixava atônito.Naquela noite, ela o convencera a se teletransportar até ali para pedir a Nïx – a mais velha das
Valquírias e também profetisa – que ajudasse a encontrar seus dois irmãos mais novos. Secretamente, ele
considerava aquilo uma busca infrutífera. Nïx, também conhecida como “Nïx, a Piradinha na Batatona”,
como todo o coven a chamava, raramente se apresentava lúcida e tinha um diabólico senso de humor.
Myst já fora alertada de que Nïx estava num estado de “completa revolta” naquela noite.
Na verdade, todas as Valquírias que Nikolai conhecera eram… excêntricas. Até mesmo sua esposa
Myst exibia uma linha de pensamento e raciocínio que ele nem sempre compreendia. E se Nïx era a mais
louca das Valquírias, então…
Mas ele precisava tentar. Não poderia ir em frente por mais tempo, perguntando-se a cada dia se
Sebastian e Conrad estariam vivos ou mortos. Na última vez que vira seus dois irmãos mais novos, eles
estavam prestes a sair de Blachmount na condição de vampiros recém-transformados. Ambos pareciam
fracos e meio enlouquecidos pela transformação. Apesar de trezentos anos já terem se passado, Nikolai
não se iludia achando que eles pudessem ter perdoado o que ele lhes fizera.
Nikolai e Myst conseguiram passar pelos espectros da única forma possível. Ela ofereceu uma mecha
do seu cabelo como pedágio, e um dos espectros pegou o caracol de fios em pleno ar. Em troca da
proteção infalível que eles lhes proporcionavam, as Valquírias ofereciam seu cabelo, que eles
trabalhavam até formar uma trança. Quando essa trança alcançava um determinado comprimento, eles
podiam submeter todas as Valquírias vivas à sua vontade por um curto intervalo de tempo.
Certa vez, dentro da propriedade escura, eles passaram pela ultramoderna sala de cinema. As
Valquírias tinham obsessão por filmes; na verdade, adoravam qualquer coisa que fosse moderna e se
modificasse constantemente, não importava se tinha ligação com tecnologia, gírias, moda ou videogames.
Ultimamente, várias Valquírias vinham aceitando Nikolai, mesmo a contragosto, pois ele e Myst
tinham se casado, e Nikolai ajudara a salvar a vida de Emmaline, que fazia parte do coven. Ele até
mesmo obtivera permissão – por meio de chantagem – para entrar na casa delas quando bem entendesse,
tornando-se o único vampiro vivo que conhecia o interior daquela casa lendária.
Seguindo pela sala de cinema, subiram a escada e foram até o segundo andar. Myst explicara a
Nikolai que a Mansão Val Hall era uma espécie de versão mais violenta de uma república feminina de
estudantes, com tudo a que tinham direito, inclusive brigas com puxões de cabelo e roubos de roupas.
Pelo menos vinte Valquírias moravam ali.
Pararam diante de uma porta onde se lia: “Covil da Nïx. Esqueça o cão, cuidado com a Nïx.” Myst
encostou o ouvido à porta e bateu.
– Quem é? – A pergunta veio lá de dentro, numa voz abafada.
– Você não deveria adivinhar? – perguntou Myst, girando a maçaneta quando a porta foi destrancada.
Entraram no aposento e o encontraram igualmente escuro, iluminado apenas por uma tela de
computador. Nïx estava de pé, com uma expressão incompreensível, enrolando nos dedos os cachos de
seu cabelo preto supercomprido. Vestia jeans e uma camiseta onde se lia: “Eu brinco com a minha
presa.”
Dentro do quarto havia também uma TV imensa, centenas de vidrinhos de esmalte de todas as cores e
o pôster de um sujeito identificado como “Jeff Probst”, no qual se informava que ele era o “Símbolo
Sexual da Mulher Inteligente”. No chão, pilhas de livros cortados em mil pedaços, muitos aviõezinhos depapel com o bico amassado e destroços de um velho relógio de pé com um pêndulo que parecia ter sido
destruído num ataque de fúria.
Myst não perdeu tempo.
– Estamos à procura dos irmãos de Nikolai, Nïx. Precisamos da sua ajuda.
Nïx pegou um dos poucos livros inteiros do chão e se sentou na cama. Nikolai viu o título da obra:
Kit de escritório de Lou para o Vodu – Assuma o controle da sua carreira com o Vodu!
– E por que você acha que eu ajudaria essa sanguessuga, posso saber? – perguntou Nïx.
Os olhos verdes de Myst se acenderam de fúria. Ela ainda se referia aos outros vampiros como
sanguessugas, e não se incomodava quando suas irmãs faziam o mesmo. No entanto, conforme explicara a
Nikolai, considerava um duplo insulto chamá-lo de sanguessuga. “Se você é uma sanguessuga e gosta de
beber de mim, em que isso me transforma? Numa otária? Numa ingênua? Tenho cara de hospedeira, por
acaso?”
Myst se encostou em Jeff Probst e ergueu um dos joelhos.
– Você vai nos ajudar porque eu estou pedindo e porque me deve isso, já que eu me calei sobre um
segredo suculento do nosso coven.
Nïx soltou uma exclamação de deboche enquanto arrancava, com as garras afiadas, as páginas do
livro sobre Vodu.
– Que segredo? – Pegou outro tomo chamado As muletas do misticismo moderno, flexionou as garras
e pareceu pensar duas vezes antes de destruí-lo por completo. Em vez disso, rasgou apenas algumas
páginas, entre as quais o capítulo intitulado “Por que é mais fácil acreditar?”
– Você se lembra do ano 1197? – perguntou Myst.
– Antes ou depois de Cristo? – quis saber Nïx num tom entediado, enquanto começava a dobrar uma
das páginas do livro. Origami? Uma forma começou a surgir.
– Você sabe que eu nasci depois de Cristo.
– O ano 1197 d.C.? – murmurou Nïx, franzindo o cenho, e seu rosto ficou ruborizado. Sua expressão
assumiu um ar de teimosia, e seus dedos se puseram a dobrar o papel com destreza e rapidez
impressionantes. – É golpe baixo me lembrar disso. Mais uma vez eu repito: pensei que ele e todos os
outros da alcateia fossem maiores de idade! – Quando seus dedos se acalmaram, ela colocou a forma
perfeita que criara sobre a mesa lateral. A dobradura parecia um dragão posicionado para ataque. – Por
acaso eu menciono os seus momentos desagradáveis? Por acaso chamo você de Mysty, a Mulher Fácil
dos Vampiros, como faz o restante do Lore? Como as ninfas se referem a você?
Myst apertou as mãos contra o peito.
– Oh, que desgraça, as ninfas me desprezam? Vou dormir na pia e chorar a noite toda. – Seu rosto se
endureceu por um instante. – Que informação você precisa de nós para conseguir enxergar alguma coisa?
Com um balançar ofendido de sua trança pesada, Nïx se virou de Myst para Nikolai e quis saber: –
Por que você deseja encontrá-los? – Começou a formar outra peça de origami sem olhar para ele; dessa
vez, foram necessárias quatro páginas das Muletas do misticismo.
– Quero descobrir se estão vivos ou mortos. Preciso saber se posso ajudar a trazê-los de volta para
casa.
– Por que eles foram embora? – A forma como ela o estudou foi invasiva. Seus dedos eram tão
ligeiros que pareciam quase invisíveis, e o papel que manuseava parecia se dobrar por conta própria.Nikolai ergueu os ombros e os lançou para trás, detestando ter de ser tão aberto com ela.
– Sebastian ficou enfurecido por eu tê-lo transformado em vampiro contra a própria vontade. Ambos
também se mostraram furiosos por eu ter tentado transformar as nossas quatro irmãs mais novas e também
o nosso velho pai, quando estavam morrendo. – Myst o analisou e mordeu o lábio inferior, pois sabia o
quanto ele relutava em tocar naquele assunto. – Não tenho dúvidas de que ambos se afastaram apenas
para ficar mais fortes e que têm o intuito de voltar para me matar.
Na verdade, seus dois irmãos tinham feito exatamente isso pouco antes de partir.
Sebastian acordara com aquela fome pavorosa da qual Nikolai se lembrava tão bem. Quando
colocaram uma imensa caneca de cerveja cheia de sangue diante dele, Sebastian não conseguiu bebê-la
com a rapidez necessária. Quando, por fim, percebeu o que acabara de fazer, voou para tentar alcançar a
garganta de Nikolai…
Nikolai resolveu esperar durante muitos meses ali mesmo em Blachmount pelo retorno deles, sem se
importar, caso tentassem matá-lo mais uma vez. Cada dia que passava sem que retornassem, Nikolai se
perguntava se eles conseguiriam se defender e recolher sangue a cada noite, sem precisar beber de seres
humanos. Sem matar.
Nïx terminou de montar o origami de um tubarão que parecia se remexer no ar, mas não afastou seus
olhos de Nikolai por um instante sequer, e o colocou ao lado do dragão. Nikolai, por sua vez, não
conseguia afastar os olhos das formas habilmente construídas.
– Você sabia que eles ficariam revoltados? – quis saber Nïx.
Depois de uma curta hesitação, ele admitiu que sim.
– Sabia. Mesmo assim eu os transformei.
Quando Myst percebeu a respiração cansada do marido, começou a relatar para Nïx tudo o que
Nikolai lhe contara a respeito dos irmãos. Aproveitando aquele instante de alívio, o vampiro justificou
mais uma vez para si mesmo o que fizera. Naquela noite, ver Sebastian à beira da morte tornara possível
a Nikolai entender quanto o irmão não aproveitara a vida e nunca mais a teria. Tudo o que queria era uma
família e um lugar onde viver em paz. Sebastian nunca tivera chance de conseguir nenhuma dessas coisas
– ele ainda nem tinha vivido – e Nikolai não conseguia aceitar isso.
Quando rapazinho, Sebastian tinha alcançado a altura de um metro e noventa e oito muito cedo, sem o
complemento do peso e dos músculos que chegariam somente um ou dois anos mais tarde. Embora tivesse
sido muito alto, magro e desengonçado, Sebastian já estava com uma bela aparência antes mesmo de sua
massa muscular acompanhar a altura.
Só que, depois disso, parecia não saber exatamente o que fazer com seu tamanho e sua força
assombrosa, que aumentavam a cada dia. Chegara a deixar roxo, acidentalmente, o olho de uma jovem, e
quebrara o nariz de outra. Já tinha pisado em tantos pés femininos que as garotas do vilarejo brincavam
que só era viável andar ao lado dele usando “tamancos de madeira e muita coragem”.
Mas a pior experiência ocorrera quando ele e Murdoch corriam pelo vilarejo, um atrás do outro,
provavelmente depois de Sebastian ter aprontado alguma confusão com o irmão. Sebastian colidira com
uma mulher e sua jovem filha. Derrubara ambas no chão com extrema violência, arrancando o ar de seus
pulmões com o susto e a queda. A experiência, por si só, já seria traumática, mas, assim que a mulher e a
filha conseguiram se recompor, começaram a gritar, chamando-o de “assassino sanguinário”.Sebastian ficara chocado consigo mesmo. Desde menino, ele sempre tinha sido tímido e introvertido,
e experiências desse tipo só pioravam a situação. Tornava-se inseguro em relação às mulheres, sem
exibir o charme de Murdoch ou a estudada indiferença de Conrad.
Aos treze anos, Murdoch já desenvolvera um sorriso diabolicamente charmoso, o que lhe garantira a
entrada embaixo de muitas saias femininas no vilarejo. Com a mesma idade, Sebastian era o irmão mais
quieto, com mãos suadas que carregavam um punhado de flores selvagens esmagadas e que nunca
chegavam ao destino pretendido.
Por isso ele se voltara para os estudos. Por incrível que pareça, apesar de ter sido treinado para a
guerra desde que tinha idade suficiente para segurar uma espada de madeira, a mente de Sebastian era a
parte mais forte do seu corpo. Escrevera tratados e artigos científicos que atraíram a atenção de algumas
das mentes mais privilegiadas da época…
– Você conseguiu ver alguma coisa? – indagou Myst, trazendo Nikolai de volta dos seus pensamentos.
– Sei dizer onde Murdoch está – garantiu Nïx.
– Eu o vi ontem mesmo – afirmou Nikolai, irritado.
Murdoch morava em Mount Oblak, um castelo conquistado à Horda. Aquela era a nova fortaleza dos
Abstêmios, e Nikolai se teletransportava até lá quase todos os dias.
– Ah, sim, claro – reagiu Nïx, num tom sarcástico. – Murdoch está exatamente onde você o deixou.
– O que quer dizer com isso? – Ao ver que o olhar sem expressão de Nïx se mantinha, insistiu: –
Sobre Murdoch… o que você quer dizer com isso?
– Dizer? Eu disse alguma coisa? O que foi que eu disse? Como é que eu posso me lembrar do que
disse ou não disse?
– Maldição, Nïx! – Ele já estava perdendo a paciência. – Eu sei que você pode nos dizer onde eles
estão.
– Você agora também é vidente, por acaso? – reagiu ela, arregalando os olhos ao respirar fundo.
Às vezes, Nikolai realmente detestava suas cunhadas.
– Nïx, eu preciso muito que você nos ajude – disse ele lentamente, quase mordendo as palavras.
Na condição de general do exército estoniano e também lutando ao lado dos Abstêmios, Nikolai
estava habituado a dar ordens e vê-las obedecidas de imediato e com entusiasmo. Aquela forma de…
pedir as coisas era torturante.
No entanto, Nïx agora se concentrava unicamente no seu dom, até que, de repente, fez uma nova
dobradura do que parecia uma forma intrincada de fogo e a depositou com cautela ao lado das outras
duas. Arrancou mais páginas do livro e as dobrou numa velocidade ainda maior. Nikolai não conseguia
tirar os olhos das criações que ela parecia executar por pura compulsão.
Momentos mais tarde, ela confeccionou um lobo de papel que uivava para o céu. Agora eram quatro
formas colocadas lado a lado, como se formassem a linha de uma história.
Myst mal olhou para as figuras enfileiradas, mas Nikolai parecia hipnotizado por elas.
– Nïx, tente com mais vontade! – reclamou Myst, e Nikolai se sacudiu deliberadamente, forçando-se a
afastar os olhos das figuras em origami.
– Não consigo ver Conrad! – reagiu Nïx, e um relâmpago apavorante explodiu ali perto.
– E quanto a Sebastian? – insistiu Myst. – Conte-nos qualquer coisa que esteja vendo.– Qualquer coisa? Ora, mas o que sei eu sobre tais assuntos? – Nïx franziu o cenho. – O que poderia
saber?… Ah, olhe lá, estou vendo aquilo que eu sei!
Nikolai se aproximou com impaciência, abanando a mão livre para incentivá-la a continuar.
Ela deu de ombros e afirmou:
– Neste exato momento, o seu irmão Sebastian está berrando desesperadamente para alguém que está
do lado de fora de um castelo. Ele exige que essa tal pessoa volte para ele e deseja isso com todas as
forças. – Sorriu, muito satisfeita consigo mesma por ver tanta coisa, até que, subitamente, bateu palmas
de alegria. – Oh, mais um detalhe: a pele dele acabou de pegar fogo!

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