capitulo7

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Quando o sol se pôs, Sebastian tomou uma ducha da única forma que era
possível em seu castelo: com água de neve derretida, recolhida numa cisterna e
levada por um cano, ainda fria como gelo, até um pequeno cômodo azulejado e com
um ralo no chão. Depois disso, vestiu roupas novas. Lustrou a lâmina da sua
espada, colocou-a dentro da bela bainha e a prendeu no cinto, junto do quadril. Em
seguida, sentou-se na beira da cama e se preparou para testar sua teoria.
Tudo dependia do sucesso dele. Eu preciso encontrá-la para tê-la. Sua mão estava molhada de suor
em torno do punho da espada.
Franziu o cenho. Se aquilo funcionasse, ele não queria aparecer diante dela com aquele ar de
adversário. Imaginou-se materializando-se em meio a um jantar de família – o vampiro crescido em
excesso, armado com uma espada muito grande. Desafivelou o cinto, colocou-o de lado e tornou a se
sentar.
Tudo se resumia na atenção aos detalhes. Foco. Concentrou-se nela por longos momentos. Arranque
tudo da sua mente, exceto ela…
Nada. Ele se recostou.
Imagine-se vendo o rosto lindo dela mais uma vez. Suas feições de elfo, o queixo delicado, as maçãs
do rosto altas, o jeito como o fitara com olhos castanhos que pareciam queimar lentamente.
Respirou mais devagar. Lembre-se da sensação de tê-la por baixo de você. O corpo dela era muito
macio, generoso, e se encaixava perfeitamente no dele.
A lembrança do perfume do cabelo e da pele dela pareceu chamá-lo com a força de um grito. Ele
começou o teletransporte e se sentiu abandonando o ar frio do castelo e entrando num lugar mais morno,
mas não fazia a mínima ideia do que iria encontrar.
Templo da Deusa Riora, Floresta de Codru, Moldávia Dia 1
o da Décima Segunda
Edição da Corrida do Talismã A panelinha de sempre, pensou Kaderin, com uma pontinha de
tédio. De seu lugar junto ao gradil de um balcão elevado, ela analisou a assembleia reunida abaixo, nas
galerias do Templo de Riora.
Como na maioria dos templos, o de Riora ostentava o obrigatório painel de mármore em estilo
paladiano, com piras de fogo e velas para acendê-las. No entanto, as semelhanças terminavam aí.
Construído num lugar muito distante, no coração da encantada Floresta de Codru, o lugar tinha carvalhos
cobertos de líquen que pareciam entrar pelas paredes ou jaziam caídos no meio dos salões internos.
Raízes faziam o volumoso piso interno se elevar em vários pontos. O domo era uma gigantesca claraboia
com intrincados mosaicos em vidro, sem padrão definido.“Ordem conquistada, impossibilidade encarnada.” Esse era o lema de Riora. Ela era a deusa da
impossibilidade, enaltecida por tornar possível tudo que fosse impossível. No entanto, pouca gente sabia
disso; ela era reservada, brincalhona e gostava de espalhar boatos. Nos últimos cinquenta anos, tornara-
se a deusa das roupas soltas e dos acessórios despojados, a chamada “alta-costura para jogar boliche”.
Kaderin se colocara ali à espera, na companhia de centenas de outros competidores, porque Riora
estava atrasada novamente. Como sempre. Para forçá-la a chegar aos lugares na hora marcada, Kaderin
tinha sido tentada, na última competição, a declarar que era impossível para a deusa ser pontual. Mas não
o fez, porque Riora simplesmente retrucaria com algo inesperado como “impossível é uma Valquíria
tomar banho num barril de óleo fervendo durante uma década”.
Para passar o tempo, Kaderin olhou para baixo com desdém, observando as ninfas e certificando-se
de que elas notavam seu desprezo. Em seguida, empinou o queixo ao ver Lucindeya, a sereia que fora sua
concorrente mais acirrada na última Corrida do Talismã. Também conhecida como Cindey, era uma rival
violenta e implacável; isso lhe garantira o respeito de Kaderin. Ambas costumavam usar uma à outra para
avançar na competição, até sobrarem apenas as duas para disputar as finais.
A partir daí, tudo poderia acontecer.
Na última vez, Cindey tinha quebrado dezenas de ossos de Kaderin. Só que, no fim, Kaderin quebrara
o dobro de ossos de Cindey, rachara seu crânio e, segundo diziam, rompera o baço da sereia.
Ao ver os adoráveis kobolds, espécie de gnomos que moravam embaixo da terra, Kaderin esticou o
braço na direção da espada que trazia presa às costas. Segurou o punho com força e nem precisou
empunhá-la para o macho mais alto do grupo – que tinha apenas um metro e vinte de altura –, pois ele
engoliu em seco e baixou o olhar rapidamente. Os kobolds, na verdade, apenas pareciam benéficos e
gentis… até devorarem alguém.
Kaderin era uma das poucas criaturas vivas que já os vira como realmente eram: predadores com
aspecto reptiliano que surgiam de repente da terra e caçavam em bandos. Ela não achava o termo gnomo
assassino terrivelmente engraçado, como acontecia com todas as suas irmãs.
A multidão de competidores consistia em todos os tipos e figuras do Lore: trolls, bruxas e as nobres
fadas. Demônios das muitas demonarquias também estavam presentes.
Kaderin notou os veteranos que pareciam dispostos a conquistar o grande prêmio – não importava
que mercadoria valiosíssima fosse oferecida ao vencedor. E identificou os abutres que planejavam
apenas agarrar os talismãs individuais designados para cada missão.
E também havia os novatos. Ela os reconheceu de imediato, pois eram os únicos que ousavam encará-
la.
Na condição de competidora famosa – e campeã que reinava havia mais de um milênio –, Kaderin se
tornara muito conhecida pelo público em todo o Lore, mais do que muitas das suas irmãs. Conquistara
poder e respeito para os seus covens – e para ela mesma. Se fosse alguém dotada de sentimentos,
certamente sentiria orgulho da sua reputação. Mal conseguia acreditar que tinha arriscado essa reputação
de forma tão tola em seu recente momento de leviandade.
Em relação às irmãs, se ela caísse em desgraça, aquilo seria como um mergulho de cabeça…
Subitamente, suas orelhas se contraíram. Sentindo algo que se movia em meio às sombras no fundo da
varanda, ela se virou e viu um macho imenso com olhos que brilhavam na escuridão. Um Lykae? Ora,
aquilo era muito incomum. Os lobisomens e os vampiros nunca participavam daquela competição.Os vampiros da Horda consideravam aquela disputa algo inferior, e os misteriosos Abstêmios sequer
sabiam da sua existência. O Lore achava divertido, e também uma opção mais astuta, manter em completa
ignorância todos os humanos que tinham se tornado imortais.
Por sua vez, os Lykae tradicionalmente não davam a mínima para o torneio.
No passado, esse conjunto de circunstâncias tinha sido um bônus. Os Lykae – apesar da sua aparência
selvagem, tempestuosa e belíssima – eram bitolados e brutais. Quanto aos vampiros… Bem,
considerando a sua capacidade de teletransporte, seriam praticamente invencíveis.
O lobisomem se movimentou nas sombras, aproximou-se dela, e Kaderin o reconheceu. Era Bowen
MacRieve, primo e melhor amigo do lobisomem que se tornara marido de Emmaline. Ele perdera um
pouco de peso ao longo do último milênio. Afora isso, notou que tinha mudado muito pouco – o que
significava que continuava belíssimo.
– Kaderin. – Os olhos dourados dele eram vívidos e seu cabelo, espesso e comprido. Ele não se
dirigiu a ela como “Lady Kaderin”, como fazia o restante do Lore. A verdade é que não a temia.
– Bowen. – Ela inclinou levemente a cabeça.
– Não vi você no casamento. Foi uma festa muito boa.
Ele fora ao casamento de Emma, e ela perdera a cerimônia.
– Estou curiosa sobre o motivo de você estar aqui.
– Vou competir. – Sua voz tinha um trovejante sotaque escocês.
Vozes graves eram atraentes. Uma lembrança intrusa surgiu na cabeça de Kaderin, trazendo à sua
mente a voz muito grave do vampiro, que falava entre os beijos. Sacudiu-se com força.
– Você será o primeiro Lykae a fazer isso em toda a história da competição.
Ele encostou o corpo alto na parede, com um jeito absolutamente indiferente. Era tão alto quanto o
vampiro, mas um pouco mais magro. Ambos tinham um jeito rústico, mas Bowen poderia ser considerado
dono de uma beleza mais clássica.
Ela o estava comparando com o vampiro? Que lindo! Como se Sebastian Wroth fosse uma carne
carimbada como nobre pelo Ministério da Agricultura.
– Está alarmada com a concorrência, Valquíria?
– Pareço apreensiva? – Ela sempre gostava de perguntar isso, pois sabia que a resposta,
invariavelmente, seria negativa. – Por que você resolveu participar só agora? – Ela já vira Bowen
combatendo vampiros num campo de batalha, muitas eras atrás. Ele costumava ser impiedoso no passado,
e ela seria capaz de apostar que isso também não mudara.
Bowen respondeu com naturalidade.
– Um amigo me contou que talvez eu tivesse um interesse particular no grande prêmio final.
Sim, Bowen era ainda mais bonito. Os olhos do vampiro, porém, tinham um tom de cinza muito forte,
escuro e irresistível. Se uma mulher se deixasse perder por alguém com os olhos de Sebastian,
certamente iria querer agradá-lo de qualquer forma que ele quisesse. Quanto aos olhos de Bowen?
Bastava um vislumbre deles, e uma mulher não saberia se era melhor pular em cima ou fugir dele.
Obviamente, o dom da falta de sentimentos de Kaderin estava se aguentando muito bem, porque ela
não sentiu sequer um tremor de desejo pelo Lykae.
– Você sabe qual será o prêmio? – perguntou ela, mas Bowen não lhe deu atenção. As bruxas tinham
acabado de chegar. Uma delas se chamava Mariketa, a Aguardada; a outra, Kaderin não conhecia. Bowenparecia muito ocupado, analisando-as atentamente. – Se você se distrai assim com tanta facilidade –
brincou Kaderin –, eu não terei problemas.
Ele pareceu cuspir as palavras.
– O que elas estão fazendo aqui?
Kaderin ergueu uma sobrancelha.
– Vieram competir. Como fazem em todos os torneios.
Ela sabia que os Lykae nunca adquiriam poções e artigos de magia da Casa das Bruxas – as
mercenárias místicas do Lore. Kaderin já ouvira inúmeros rumores sobre esse desprezo dos Lykae e,
certa vez, chegara a especular sobre o motivo. Não conseguia imaginar a vida sem aqueles feitiços tão
convenientes, como os colares para afastar vampiros e as jaulas à prova de teletransporte. Eles eram tão
importantes para a vida civilizada quanto os chuveiros. A falta daqueles itens, na opinião de Kaderin, só
seria imaginável num ambiente de bárbaros.
Agora, analisando a expressão de Bowen, Kaderin se perguntou se os Lykae se abstinham de comprar
encantamentos, simplesmente porque as bruxas os assustavam.
– Afinal, você sabe qual será o prêmio? – repetiu ela.
– Não sei exatamente – disse ele, a atenção ainda presa às duas bruxas. – Mas eu sei o bastante para
preveni-la de que serei capaz de matar para conquistá-lo. – Finalmente, olhou para Kaderin e completou:
– E atrevo-me a dizer que matar você iria prejudicar a tênue trégua entre os Lykae e as Valquírias.
– Você quer dizer que, por causa do casamento de Emma e Lachlain, eu deveria tirar o time de
campo? Apesar de esta ser a minha competição desde o tempo em que você não passava de um filhote de
lobo recém-nascido?
Ele encolheu os ombros largos.
– Eu preferia não ferir você, apenas isso. Nunca agredi uma fêmea, muito menos provoquei o nível de
danos que, segundo ouvi dizer, essa competição exige. Danos como os que você já impôs a outros.
– Ora, lobisomem, não odeie os participantes… odeie o jogo. – Ela se virou para o outro lado, como
se o dispensasse. Uma perna quebrada logo no início colocaria aquele cão fora do páreo.
Pelo menos, ele não era um vamp…
O vampiro surgiu do nada, em pleno ar.
As garras de Kaderin se enterraram no gradil como se ela precisasse daquilo para se manter de pé.

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