III

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Ela se senta na cama ainda sem expressão nenhuma, coça os olhos e ajeita os cabelos colocando-os por cima dos ombros.

— Fico pensando o que será de nós se a nossa filha se for — ela começa a falar, agora com um semblante perdido.

— Talvez não precisemos passar por isso. Nossa filha ficará boa eu tenho certeza disso.

— Eu gostaria de ter a sua esperança, mas eu não consigo amor.

Faz algum tempo que eu não escutava ela me chamar de amor. Nos últimos meses essa palavra foi substituída gradualmente por querido até que nas últimas semanas eu já não escutava mais nada, às vezes apenas meu nome.

— Sabe amor, você não é a única que perdeu a fé em Deus ou no tratamento. Passei por uma fase que simplesmente entreguei tudo isso na mão do destino.

Seus olhos escutando essas palavras começaram lentamente a se encher de lágrimas.

— É por isso que você se enfiou na empresa e se esqueceu que tinha uma família precisando de você? — ela pergunta passando a mão no rosto tirando uma lágrima que começava a cair.

— Eu acho que sim.

Na verdade, naquele momento eu já tinha certeza.

— Você não acha que está sendo covarde com a gente? Você não precisa se enfiar naquelas malditas lojas todo o tempo.

Cheguei ainda mais perto dela e enxugando mais uma lagrima que caía de seu olho esquerdo com a mão respondi:

— Me desculpe, mas eu não estava aguentando.

— Há muito tempo eu não estou aguentando — ela me responde colocando a mão esquerda dela sobre a minha que está no seu rosto.

— Você ainda me ama? — eu pergunto.

— Sim, mas não sei se nosso casamento sobreviverá se nossa filha morrer.

— Eu já falei pra você, ela vai ficar bem — falo isso abraçando-a.

— Eu tenho fé nisso.

Ela sai do meu abraço e me olha meio confusa.

— Deus não vai nos ajudar, mas outra coisa vai.

— Como assim? — ela me pergunta ainda mais confusa.

— Pra você entender, você precisa saber a verdade que eu encontrei sobre a doença de meu pai.

— Seu pai não morreu para uma espécie de Alzheimer desconhecido que até hoje os médicos não fazem ideia o que realmente era aquilo?

— Eles nunca saberão. O conhecimento para desvendar o mistério está além do mundo natural.

Levanto-me e pego na mão dela, a puxo levantando-a e vamos para fora do quarto em direção ao escritório. Chegando lá puxo uma cadeira e ela se senta em frente a escrivaninha então me sento na poltrona e pego um par de chaves que se encontra em um compartimento escondido na gaveta do meio. Levanto-me e abro uma porta do armário do lado extremo esquerdo e tiro do meio de alguns livros o diário do meu pai e coloco sobre a escrivaninha.

— O que é isso? — ela me pergunta.

— Meu pai tinha um diário aonde ele não só anotava sobre sua rotina, mas também como ele se sentia durante a doença até aonde ele se lembrava que tinha um diário.

Luciana pega o diário e começa a folheá-lo. Depois de alguns segundos ela para e lê um parágrafo:

Na visita aos meus tios em Quixadá passei em uma lojinha que fica no centro da cidade. Nos últimos tempos tenho me interessado sobre essa coisa de Ets e nada melhor que essa cidade para isso. Chegando lá encontrei muita coisa interessante, como discos voadores e Ets da cabeçona de vários tamanhos e com posições deferentes, mas o que me chamou a atenção foi uma pequena estátua que destoava de tudo aquilo.

— Acho que você já me falou dessas esquisitices dele, não foi? — ela me pergunta levantando o olhar para mim.

— Nesse dia fomos a família toda para lá. Esse momento aí ele me levou junto.

Luciana continuou no parágrafo seguinte.

Abraão não parava de olhar um disco voador que deve ter uns trinta centímetros de largura e uns dez ou doze de altura. Esse era todo prateado e brilhante com um vidro no meio onde lá dentro tinha um pequeno Et fazendo aquela saudação daquela série de viajem espacial dos anos sessenta. Eu comprei para ele e enquanto ele se distraía perguntei a origem daquela peça estranha ao vendedor o senhor Sebastião. Vou até anotar o nome dele aqui para não esquecer, sua lojinha é muito interessante.

Ele me falou que adquiriu a pequena estátua de um pequeno fazendeiro das redondezas que comprou o objeto em uma feirinha em Jijoca. O fazendeiro falou que se interessou pelo objeto, pois foi-lhe falado que foi encontrado em um suposto local de queda de um meteorito e que a estatua poderia conceder desejos. De verdade eu só comprei pela estranheza do objeto que parece uma espécie de monstro marinho, uma mistura de água viva com homem sentado no trono das profundezas.

Enquanto Luciana folheava cada vez mais páginas do diário eu peguei umas das chaves em mão e abri a última gaveta da esquerda e peguei a estátua, tirei o pano que a protegia e coloquei na frente dela. Ela parou de olhar o diário por um instante e olhou intrigada para o objeto.

— Nossa é muito mais estranha do que eu poderia imaginar!

O objeto tem mais ou menos quinze centímetros de altura e uns oito no máximo de largura. A criatura representada em pedra talhada com uma certa precisão de detalhes é muito mais que a mistura de água viva com homem. Sua cabeça tem o formato de água viva, mas em vez de sair da cabeça tentáculos, sai um corpo humanoide onde em vez de ter dois braços apenas há quatro braços esguios.

Os braços saem de quatro ombros dois de cada lado grudados um na frente do outro como se fossem gêmeos siameses. Os dois da frente descansando apoiados no braço do trono e os dois de trás unindo suas mãos, que tem apenas dois dedos longos e ponte agudos e um que parece um polegar, em seu ventre, a mão esquerda sobre a direita com os polegares se tocando.

Na parte debaixo em vez de ter pernas há vários tentáculos se assemelhando a de águas vivas realmente, indo até uma base circular de uns dois centímetros de altura onde as pontas se espalham por toda a frente.

— Eca! Ele é meio molhado. — Luciana exclama ao pegar no objeto.

— Ele não era assim, não que eu me lembre. Ele ficou assim quando comecei a ter os sonhos estranhos que meu pai tinha.

— Sonhos? Que sonhos?

— Me dá aqui o diário por favor!

Procurei a página que tem o relato dos sonhos de meu pai que aprendi e mostrei a ela.

— Essa falência que ele fala aqui é aquela que seu pai fecha quase todas as lojas na crise da superinflação dos anos noventa que você me falou uma vez, não foi?

— Sim ali no começo da década. Meu pai conseguiu segurar a barra milagrosamente.

— Vá para a próxima marcação por favor! — pedi a ela, o diário está todo marcado com adesivos.

Não consigo parar de ter esses sonhos estranhos e agoniantes, aquela estátua que comprei em Quixadá parece me chamar. Em outra visita aos meus tios dessa vez fui até Sebastião para saber onde era a propriedade desse pequeno fazendeiro. O nome dele é Augusto.

Sebastião me explicou como encontrá-lo aqui na cidade mesmo, pois desde que ele viu uma luz brilhante rasgar o céu de sua propriedade fazendo manobras estranhas e aparentemente impossíveis ele passou a frequentar uma vigília noturna para tentar observar discos voadores que começava às oito da noite e ia madrugada adentro. Nesse dia teria essa vigília. E eles se reuniam antes na lojinha umas seis da noite para se prepararem para ir.

Mais tarde naquela noite eu cheguei na lojinha e encontrei um grupo de oito homens, Sebastião me apresentou Augusto. Um senhor com quase sessenta anos, careca e de barba já bem branca. Então comecei a explicar para ele que eu tinha comprado a estátua que ele vendeu e o que eu estava passando até que ele me falou algo que começou a clarear as coisas. 

Águas Vivas de Memórias (um conto)Onde histórias criam vida. Descubra agora