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A água viva de meus sonhos está lá, flutuando parada no meio da sala. Translucida, com a cabeça brilhando em rosa e os tentáculos em amarelo. Ela é enorme. É real? Estou sonhando novamente? Uma vez eu vi em algum vídeo do YouTube sobre sonhos lúcidos que se eu conseguir tocar a palma da minha mão com a ponta de meu dedo indicador eu estou no mundo real. Caso atravesse eu estou sonhando, mas só no ato de conseguir fazer esse experimento eu estaria ciente do sonho. Levanto a minha mão direita, com o dedo indicador de minha mão esquerda faço o experimento. Não atravessou? Estou acordado?

A água viva se aproxima de mim rapidamente. Ela estava entre a televisão na parede e o nosso sofá, a coisa simplesmente atravessa o sofá e para na minha frente. Caio sentado no chão sem acreditar. Aquilo realmente estava acontecendo. Eu rezei e essa entidade apareceu. Deve ter uns dois metros de altura ou quase isso. A cabeça da água viva se inclina para baixo em minha direção, levanta a cabeça novamente e me atravessa em direção a piscina que fica atrás da cozinha.

Quando ela me atravessa sinto como se ela estivesse me chamando para segui-la. Levanto-me e sigo o caminho contrário ao dela em direção a porta. Quando abro me deparo com uma chuva  fina, mas daria para escutar de dentro da minha casa. Que estranho! Contorno a casa em direção a piscina, até bato em uma das cadeiras que está na lateral da casa. Está tão escuro, parece que os postes de luz do lado de fora estão todos apagados. Quando chego na esquina esquerda da parede para a piscina vejo a água viva entrando lentamente nela.

Piso na grama molhada com os pés nus, deixando meus chinelos para trás em cima do piso branco. Depois de um metro meus pés tocam o piso de madeira que fica em volta da nossa piscina retangular, ela tem uns doze metros de comprimento, oito de largura, uns dois metros de profundidade. A madeira está lisa, ando com cuidado para não cair, passo por uma das espreguiçadeiras. Na borda olho para dentro dela então um relâmpago ilumina tudo, a água está escura não consigo ver o fundo. A chuva piora, pingos grossos começam a castigar toda a água o som de um trovão soa ao longe.

Estou todo molhado, sinto frio. Fico ali parado por uns minutos e nada. Será que estou ficando louco? O que eu vi deve ter sido alguma alucinação por estresse ou algo do tipo. O que estou fazendo aqui parado? Olho para o lado por um instante e nessa hora sinto um brilho vindo da piscina, quando olho sinto uma mistura de medo e fascínio.

Vejo duas águas vivas em um movimento yin yang. Estão emergindo lentamente nessa dança bela e bizarra, é como se tivessem me hipnotizando. Uma luz brilha muito forte acima de mim. Mais um relâmpago. A chuva piora ainda mais, um vento forte começa a soprar, até que o som estridente do trovão me assusta. Viro-me para trás olhando para cima de minha casa. Um novo relâmpago ilumina o céu e tomo mais um susto que me faz cair para dentro da piscina.

***

Meus olhos abrem lentamente. A última coisa que lembro é uma sombra gigantesca no céu quando o relâmpago caiu. Estou todo molhado. Meus olhos doem, me sento e aos poucos consigo ver o ambiente em minha volta. Onde estou?

Sinto meu pé entrando em uma areia escura e molhada, em volta muitas pedras acinzentadas e... corais? Essa paisagem se estende até aonde consigo observar no horizonte. Um horizonte, diga-se de passagem, azulado, quando olho para cima percebo não haver nuvens, apenas o azul até que observo algo esquisito com o sol. A luz do sol não machuca meus olhos, na verdade, nem parece o sol mesmo, é uma luz branca brilhante e distorcida no céu, amorfa. É muito estranho, parece... parece... o sol quando é visto debaixo d'água.

Começo a andar para frente, apenas andar. Subo e desço montinhos de pedras, passo pelas coisas que parecem corais, corais enormes, alguns de cinco, seis metros de altura com colorações variadíssimas, desde o cinza se camuflando com as pedras e areias a roxo, rosas, azuis entre várias outras cores bem vivas.

Depois de alguns minutos andando os corais vão sumindo, talvez eu esteja saindo do recife então percebo surgindo ao longe um pico de uma montanha. Ando em direção a essa montanha, a cada minuto ela vai ficando cada vez mais imponente até que começo perceber algo se aproximando de seu cume.

Um som alto e grave rasga os céus sobre minha cabeça, quando olho para cima caio sentado sem acreditar. São as águas vivas, as mesmas de meus sonhos e que vi em casa, porém enormes, gigantescas, tão grandes como baleias Jubartes. São centenas no céu indo em direção a montanha, todas ordenadas em uma única fila não reta,  como uma espiral, pares atrás de outro par, uma girando em volta da outra. Estranhamente não sinto medo ao ver aquilo, é uma visão bela.

Não sei exatamente a quanto tempo estou andando, talvez uma hora ou mais. Já estou muito perto da montanha, ela é gigantesca, milhares de metros. As águas vivas entram nela de alguma forma, talvez uma abertura em seu cume. Fecho meus olhos por um momento, meus pés começam a doer. Quando abro meus olhos tudo está escuro. Ficou de noite? O ambiente só está sendo iluminado pelo brilho rosado e amarelado vido das águas vivas. Olho para o céu novamente e toda aquela procissão delas para montanha está no seu fim, as últimas estão chegando.

Corro em direção a montanha o mais rápido que eu posso. No céu não há estrelas ou lua, só as águas vivas estão iluminando o ambiente. No meu campo de visão noto uma abertura de uma caverna a minha direita. Chegando próximo a ela escuto o som grave das águas vivas vindo de dentro dela. Nessa hora vem a minha cabeça a visão de meu pai em seu leito de morte e de minha filha antes do câncer. Novamente o som grave sai de lá, então eu entro.

O que eu tinha na cabeça para entrar aqui? Tudo está escuro. Eu consigo pegar nas paredes de ambos os lados esticando os meus braços. É o único jeito de tentar entender onde eu estou. A parede da caverna parece circular, de pedra com uma textura bem granulada, mas ao passar a mão sinto que se eu pressionar mais, as paredes acabarão me cortando.

Viro à direita, ando mais alguns metros e viro à esquerda, mas não chego a nenhum lugar até que mais adiante percebo um pulsar de luz. Ando até lá e me deparo com uma bifurcação. A minha esquerda a escuridão absoluta em que me meti continua infinitamente, já a minha direta é aonde a luz pulsante está vindo.

Entro então atrás dessa luz, dessa vez roxa e sombria. Ao colocar as mãos nas paredes a textura mudou radicalmente. Não parece pedra, está macia e úmida como se fosse feito de algo orgânico. É nojento. O chão também está macio, me ajoelho e o toco,  é a mesma textura das paredes. Ainda com a mão direita no chão percebo uma onda de luz roxa vindo em minha direção. Meu Deus! Agora consigo ver tudo. As paredes são feitas de tentáculos bizarros. O pulso de luz me atinge. Olho para trás vendo ele seguir sua direção pelos tentáculos que estão por toda parte, quando olho para frente novamente... 

Águas Vivas de Memórias (um conto)Onde histórias criam vida. Descubra agora