VI

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Uma grande parede de terra está na minha frente, barulhos de bombas e balas são ensurdecedores. Quando olho para o lado direito, há vários corpos espalhados pelo local com uniformes meio amarelados. Muitos com a cara destruída por balas, outras simplesmente parcialmente arrancadas, em pedaços. Granadas? Estou em uma trincheira? Ao olhar para esquerda vejo vários homens atirando, outros morrendo. Escuto alguém gritando alguma coisa ao longe em uma língua estranha, parece... francês. Então percebo um rifle em minhas mãos. Quando olho para o lado esquerdo novamente todos estão escalando a trincheira e avançando, eu simplesmente os sigo.

Mal dá para ver o inimigo em minha frente, apenas vultos recuando ao longe. Alguns soldados ao meu lado caem mortos, ou por tiros, granadas ou qualquer outra coisa feita para los mata. Sinto uma explosão bem próxima de mim onde sou arremessado para trás. No chão uma dor sem igual toma o meu corpo. Tento levantar e minhas costelas doem. Acho que quebrei algumas delas. Quando finalmente consigo levantar já não estou no mesmo local.

Uma criança, um menino está no meu colo. Ele é loirinho com bochechas grandinhas, ele está de camisa amarela e sorri para mim. Seus olhos verdes brilham a cada palavra que sai da minha boca. Palavras essas francesas. Talvez seja a mesma pessoa. Pode ser que eu esteja contando como sobrevivi a guerra. Escuto uma voz feminina chamar ele. A mãe dele talvez? O menino sai de meu colo e vai para aonde a voz está o chamando. Pisco o olho e já não estou mais lá.

Estou na caverna novamente. Levanto-me do chão tentacular e sigo naquela escuridão onde só consigo enxergar algo quando o feixe de luz roxo passa novamente pelos tentáculos. Em um desses momentos coloco a mão na parede e espero a luz passar novamente, quando ela me atinge sou transportado.

Agora estou sentado em uma praça cheia de árvores e muito verde para todos os lados. As pessoas passam na minha frente. Algumas senhoras com seus cachorros, homens correndo com roupas de exercício, outros de terno e gravata e maletas pretas andando pelo local. Ao longe prédios altos completam a paisagem. Sinto uma sensação esquisita. Uma mulher ruiva de olhos verdes e óculos grandes para na minha frente. Ela é linda, dou um sorriso para ela, mas não recebo um sorriso de volta.

A mulher deve ser alguma secretária de alguma empresa ali por perto, ela está vestida toda socialmente, o seu cheiro é tão gostoso, um perfume suavemente doce. A pessoa que estou e ela começam a conversar. É inglês, eu entendo um pouco. A ruiva parece ser americana já o sotaque da casca que me encontro é bem europeu, lembra o britânico, não sei dizer ao certo, talvez holandês ou sueco, algo assim.

A mulher está terminando o relacionamento entre os dois. Sou tomado por uma tristeza profunda e uma vontade de gritar. Eles estão discutindo sobre ele não ter tempo para ela. Acredito que ele trabalha viajando. O interessante que estou no corpo dele, sinto o que ele está sentindo, mas não tenho as memórias dele. Que forma bizarra de ser um espectador.

Depois de tudo me sento novamente no banco da praça. As lágrimas enchem os meus olhos, por um instante fico ali até que em um enxugar de lágrimas mais demorado sou levado ao túnel novamente. Ando mais um pouco, nesse momento não está vindo nenhum pulsar até que depois de alguns minutos andando na escuridão me surpreendo com um pulsar que vem de baixo. É um buraco enorme, já estou com um pé na direção dele, me desequilibro e caio. Quantos metros eu desci pela escuridão tentacular? Não faço a mínima ideia.

Passei alguns segundos caindo e quando toquei o chão foi a primeira vez que duvidei que tudo isso que estou vivenciando é algo real. Não senti nada na queda. Estou muito confuso. Se estou no controle e não é real e nem é um sonho, onde estou realmente? Uma dimensão obscura onde a lógica não funciona?

Levanto-me e quando ergo a vista um novo pulso de luz passa por mim. Estou me vendo? Estou deitado me vendo ao meu lado. A parede do teto é branca com uma luz apagada em cima de mim. O meu eu pega em minha mão. Não acredito!

— Obrigado jovem por estar aqui, mas quem é você? 

O meu eu começa a chorar e fala:

— Sou eu pai, por favor não esquece de mim.

Eu choro dentro de meu pai. Ele está se sentindo confuso, perdido. O meu eu mostra uma foto dos dois no celular. Meu pai é tomado por uma tristeza profunda enquanto o meu eu explica-lhe o que está acontecendo. Depois de várias fotos ele me pede para sair.

Já estou novamente no chão nojento dessa dimensão do inferno. Meu pai morreu algumas horas depois daquele ocorrido naquela lembrança. Ele morreu segurando a minha mão olhando-me com uma cara de tristeza e confusão que eu nunca vi, nem mesmo nos filmes mais trágicos. Talvez ele estava lutando com todas as forças para se lembrar, mas a frustração deixava ele cada vez mais perto da morte.

Ao me levantar me deparo com uma visão bizarra e colossal. A entidade da estátua em meu escritório está na minha frente. Sentada em seu trono, a coisa é gigantesca. Ela tem uns quarenta metros? Ao seu redor na base, tentáculos como os da caverna sai de todas as direções vindo da criatura,  entram em várias aberturas nas paredes do local a minha volta e, bem, presumo que se espalham por toda a montanha. 

Acima de sua cabeça as águas vivas que faziam a procissão para a montanha estão o rodeando como um cardume. Logo acima delas, que estranho, consigo ver a abertura que eu imaginava que estaria no cume. Mas eu não subi. As cavernas eram planas e eu ainda cai em um buraco então era para eu estar mais fundo na montanha e não ter parado próximo ao cume dela.

O som grave que elas fazem ecoa por todo local, as paredes de pedra devolvem para mim de forma ensurdecedora. Coloco as mãos no ouvido, está ficando cada vez mais alto. Elas começam a orlar cada vez mais rápido, se aproximando gradualmente da cabeça da criatura que está lá imóvel. O barulho do seu maldito cantar se torna ainda mais forte. Droga, meus tímpanos não vão aguentar. Então todas entram na cabeça da criatura atravessando-a como fantasmas, um brilho forte de luz ofusca os meus olhos.

O brilho finalmente desaparece e o que resta é a entidade agora com a sua enorme cabeça abaixada como se estivesse olhando para mim. Ela fulgura em roxo em toda parte superior de seu corpo e amarelo em seus tentáculos. De repente uma voz quase gutural ecoa em minha cabeça:

— Ajoelhe-se perante ao seu livrador.

Meus joelhos caem quase que instantaneamente e uma pressão sobre mim me faz baixar a cabeça. 

Águas Vivas de Memórias (um conto)Onde histórias criam vida. Descubra agora