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Volto do almoço para minha sala, preparando-me para mergulhar mais uma vez no trabalho. Hoje o dia estava cheio e caótico do jeitinho que eu gostava. Trabalhar era pra mim uma forma de desviar os focos aleatórios de minha mente, mantendo-a centrada.
Uma hora depois, ouço batidas na porta. "Entre" digo sem nem ao menos olhar para ver quem é.
-- Oi, Luane, chegou isso aqui pra você -- minha secretária diz, não se preocupando em ser tão formal, causa de uma boa amizade.
-- Pode deixar aí na minha mesa, Kristen, que já vou ver o que é. Urgente?
-- É um convite de casamento muito chique da sua irmã -- diz finalmente atraindo meu olhar.
-- Casamento? Nem ao menos sabia que Vitória estava namorando, quem dirá querendo casar... -- falo pensativa. Minha irmã mais nova iria se casar?
-- Aqui está o nome de Gabriela.
Franzo a testa. -- Você está lendo isso direito? -- Estendo a mão, pegando o delicado convite, ainda não acreditando que era o nome da minha irmã do meio naquele papel. -- Mas que porra... Essa garota me odeia, e afirmo, a recíproca também é verdadeira - não completo a fala pois sou interrompida pelo toque do meu celular.
"Bruxinha ♡" aparece na tela. Atendo.

- Time mais perfeito impossível, irmã - digo irônica.
- Eu sempre sei das coisas. Imagino que deva estar confusa...
- Ora, ora, Sherlock...
- Xiu, foi a mamãe que mandou ela entregar.
- A mamãe ainda não perdeu a mania de querer se intrometer na vida alheia? Precisamos catar algum retiro espiritual para ela focar em suas energias ao invés das dos outros...
- Não é os outros, são minhas filhas - ouço a voz da minha mãe um pouco mais distante. - Isso não é um convite, é uma ordem.
- Sinto muito, nesse dia tenho uma viagem marcada para a Itália à trabalho - minto com naturalidade.
- Mentira que Kristen já me passou como está sua agenda - a voz mandona da minha mãe estava bem alto no meu ouvido, o que significa que já estava se irritando e tomado o telefone da mão da minha irmã.
- Ela é uma traidora - digo em tom acusatório olhando para Kristen que da de ombros.
- Não culpe a menina, eu disse que iria fazer-lhe uma visita. Então está decidido, quero você aqui depois de amanhã.
- Sabe como é, mãe, a passagem está bem salgada de volta para o Brasil.
- Deixe de ser uma safada, pois você recebe em dólar. - Não estou brincando, dona Luane. Esse é um momento especial e eu quero que você esteja com a gente. Foi embora da noite para o dia e nunca mais voltou. Já se fazem 10 anos garota. Daqui a pouco, morre eu e seu pai e aí, vai ficar com a consciência pesada.
- Nada de drama, dona Mariana. Vocês estão muito bem de grana e já vieram me ver um milhão de vezes.
- Mas eu quero meu bebê em casa - choraminga usando de suas artimanhas maléficas.
- Por favor irmã - Vitória completa. Ouço um "quem é" masculino e logo reconheço a voz do meu pai, agora o golpe é baixo.
- Oi garotinha - meu velho fala. - Venha por nós. Não vamos forçar - meu pai é interrompido por minha mãe que grita "vamos sim", arrancando um sorriso meu - mas vai ser muito importante te ter no meio de tanta alegria. Já está mais que na hora de você e Gabriela se entenderem. Ela está disposta a tentar, então tente também - pede com carinho. Placar: pais, um e eu, zero.
- Tudo bem pai. Por vocês. - Tenho que afastar o celular da orelha por causa da minha mãe e irmã. Puta merda. - Não sei se vou conseguir estar aí depois de amanhã, mas essa semana ainda eu apareço por aí.
- Ok, pequena. Amamos você.
- Eu também.

Encerro a chamada, tornando a dar atenção a minha secretária e amiga. - Kristen, cuide do que for necessário para deixar minha agenda livre e que eu possa trabalhar de lá. Veja se tem algo que seja indispensável a minha presença até o dia desse casamento.

- Pode deixar.

- Obrigada, já pode ir.

Recosto-me na cadeira, tentando organizar meus pensamentos antes de voltar à minhas atividades.
Voltar para o Brasil? Soava como um sonho estranho, com seus bons e ruins aspectos. Meus pais e minha irmã Vitória eram as únicas pontes que ainda me ligavam ao país onde nasci e cresci.
Ter em mente que eu voltaria para o lugar onde tanta coisa aconteceu não me agradava nem um pouco. Mas eram as únicas pessoas que ainda importavam que estavam pedindo meu esforço. E eu precisava me lembrar de que não era mais a garota de 18 anos que saiu de lá surpreendendo a todos. Hoje eu era diretora de uma empresa em Manrhatan, com quase 30 anos na fuça, que não era mais a gorda estranha da família, que aprendeu a lutar e a se defender e que não era mais apaixonada... Mas uma pequena parte dentro de mim... Era ainda a garota com 18, gorda e estranha, que não sabia nem lutar, muito menos se defender e principalmente, ainda era apaixonada.
Pego o convite, olhando os nomes. Gabe e Jhonas. Gabriela era a irmã do meio mais vaidosa. Gostava do estilo burguesinha, festas e namorar. Obviamente diferente de mim e Vic. Nossas diferenças de idade eram bem poucas. Um ano de mim para ela e dois, dela para Vic. Gabe sempre foi de chamar a atenção e conseguir o que queria. As pessoas à sua volta tinham dificuldades em dizer-lhe não. Imagino o futuro esposo dela, ignorando o fato do nome dele ser parecido com aquele que um dia eu amei, tinha que ser alguém bem paciente para lidar com ela, sem duvidas.
Nós duas nunca nos demos bem, desde pequenas tudo era motivo para brigarmos. Às vezes nos comportavamos por causa de nossos pais, e isso, como deu para ver, dura até hoje. Sempre fui a mais séria das três, a que estava constantemente se perguntando se estaria incomodando. O que facilitou o meu ressentimento pela minha irmã, quando eu estava tendo um pouco de atenção, no inicio dos nossos pais e depois dos amigos de escola como também os demais parentes... com exceção de um - infelizmente -, Gabriela entrava em cena e logo eu era deixada de lado. Foi um dos motivos que me levou a descontar na comida. Era a unica que me fazia companhia, ainda mais depois que os abusos começaram. O que me fez perder ainda mais o gosto por me arrumar ou me abrir para as pessoas ao meu redor.
Eu sabia que meus pais me amavam. Mas eles estavam tão ocupados cuidando de sua empresa, se dividindo entre duas crianças, logo depois o aparecimento do cancêr de estomago do meu pai, que graças a Deus estava bem no inicio e era benigno, para então vir de brinde mais uma menininha. O que acelerou ainda mais o ritmo para que continuassemos a estudar nas melhores escolhas, tivessesmos fluencias em outras línguas, andassemos bem vestidas e por ai vai.
Além disso outra coisa me fazia companhia constantemente, o bullying. Isso só foi mudar anos depois, quando ele apareceu no cenário. Defendendo-me em uma situação constrangedora, conquistando meu coração burro e insolente. Viramos amigos. Foi ele que me deu forças para tentar sair do meu casulo. Comecei a me alimentar melhor e também a fazer exercícios. É engraçado, te zoam pela sua gordura, isso ou aquilo, mas se você tenta mudar, te zoam como se fosse um insulto, como se eu não tivesse o direito de sair e ter de me contentar em ser sempre o alvo de seus divertimentos. Mas ainda assim, ele continuava me dando forças.
Se eu achava que era bom demais pra ser verdade? Ah... estava apaixonada. Estava cega para qualquer coisa além dele, sempre lindo e simpático... Até um dia ver ele beijando minha irmã. Aquilo foi a gota d'água para tudo.
Chega de ser trouxa. Aproveitei que tinha uma tia distante por parte da minha mãe nos Estados Unidos e só contei para os meus pais quando já estava no avião, a caminho da casa dela. Eu já tinha meus 18, então era legalmente maior de idade, poderia tomar aquele tipo de decisão. Minha tia era minha segunda mãe. Foi para ela que senti confiança suficiente para contar tudo o que havia me acontecido, desde os abusos sexuais sofridos durante anos até o amor não correspondido.
Ela me acolheu, cuidamos uma da outra desde então. Suzane não tinha marido, nem filhos, estava também focada em sua carreira profissional. Suzi, como eu a chamava, me levou a uma terapeuta maravilhosa, começamos a fazer academia juntas, e o seu gosto pelo trabalho passou para mim também. Era uma válvula de escape bem útil para esquecer, ou tentar pelo menos, tudo pelo que passei. Comecei como faxineira na empresa onde estou. Sempre dando o meu melhor, sendo pontual e fazendo com excelência. Minha terapeuta me ajudou a ser mais sociável e a usar isso ao meu favor, o que apliquei na empresa, conseguindo crescer ao longo dos anos até estar onde estou.
O que passei me serviu como um lembrete doloroso para sempre me proteger e não voltar aquela estaca zero. Nada tem valor maior do que amar a si mesma, entender que eu não posso e nem preciso me contentar com migalhas, que os incomodados que se mudem e que não há nenhum problema em ser luz, em se cuidar, em seguir em frente.
Hoje entendo que o que eu sentia sobre a minha irmã não passava de inveja. Ela nasceu com algo que eu lutei com unhas e dentes para ter. Contudo, não era suficiente para começar a ama-lá e viver felizes para sempre. Pois sua autoestima é egocêntrica, ela passa por cima das outras pessoas, não permite que enxergue que está sendo inconveniente e antipática. Colocar-se no lugar do outro não era bem o seu forte. E isso ainda era irritante.
Meu celular toca, tirando-me dos meus pensamentos sobre família e passado. Era o trabalho me chamando. Volto a focar no que preciso fazer e sou uma das últimas a sair do escritório.
Entro no meu carro, recostando-me no banco por um momento, tentando aliviar a pressão mental que me cobrou uma parte da minha atenção o dia todo. Após alguns momentos, ligo o carro e dou partida para um restaurante.
Janto e tomo um bom vinho. Meu celular notifica uma mensagem. Ao olhar vejo que é de Suzi.

"Está bem? Demorando a chegar, fiquei preocupada." Ela diz.
"Estou em um restaurante agora, o dia foi cheio, quis espairecer."
"Okay, se cuida."
"Pode deixar, logo mais estou em casa."

Guardo o celular na bolsa ao tempo que sinto alguém se aproximar.

- Boa noite, Luane - Brandon, um amigo das aulas de luta me cumprimenta.
- Olá, Brandon. Como você está? - digo ao homem negro, alto, forte, vestido elegantemente ao meu lado.
- Precisando de uma boa companhia, posso?
- Claro. Também estou - digo sincera. Nós dois não nos falamos muito, aliás eu não falo muito com ninguém fora do trabalho. Mas depois do turbilhão que tive hoje, só queria conversar e quem sabe o que mais. Eu precisava me centrar para enfrentar o que estava por vir.

Um dia foi meu Onde histórias criam vida. Descubra agora