Capítulo 2: Luke Travors

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Não posso acreditar! Aquele calhorda mentiroso...
Bufando como um cão raivoso, eu descontava parte da raiva que estava sentindo no volante do carro.
Descobrir que meu avô mentira para mim mais uma vez me revoltava a ponto de não conseguir me controlar, e isso era um problema. Não o fato de estar furiosa, e sim estar fora de controle.
Haviam se passado poucos minutos desde a minha partida do cemitério, logo depois de tornar a enterrar aquele caixão vazio junto às flores dos idiotas que choraram a morte de Phineas Flenty.
Tudo em vão. Ele está vivo!
O meu eu racional insistia em me dizer que dirigir perigosamente não ia ajudar em nada, mas mesmo assim eu o fazia. Irada daquele jeito, eu acabaria matando alguém.
Não demorou muito e, felizmente, cheguei em casa.
Minha casa é um apartamento modesto perto do centro comercial de Cleverly Falls. Em outras palavras, não era uma vizinhança muito tranquila, mas era exatamente o que eu queria.
Estacionei o veículo na garagem e ficar a contemplar o para-brisas sem me atrever sair.
Minha mente mais parecia uma tela de cinema devido às imagens, recordações e sonhos que faziam parte dela.
Um sentimento de descrença me consumia, fazendo me pensar se algum dia poderei confiar plenamente em alguém de novo.
Não que eu odei meu avô, mas descobrir que fui enganada por ele mais de uma vez me irrita.
Desci do carro e me dirigi ao elevador, pronta para subir até meu apartamento e afogar minhas mágoas com um enorme pote de sorvete, assim como aquelas mulheres de filmes românticos com o coração partido fazem.
O elevador de serviço estava vazio aquela hora do dia, o que me pareceu perfeito. Precisava de um tempo sozinha, para pensar sobre tudo o que estava acontecendo.
Antes, porém, fui guardar as botas e a pá no depósito do jardineiro, temendo que ele não tivesse sentido a falta destes objetos.
Como uma bandida que acaba de chegar depois de um crime, eu subia no elevador sem conseguir parar de pensar no que acabara de fazer.
Eu jamais havia feito algo assim em toda a minha vida, mas foi necessário. Eu precisava de respostas.
A superfície espelhada das paredes do elevador refletiam o que eu mais temia ver: uma garota desgrenhada, suja, iludida e confusa.
A primeira pessoa que conheci, desde que me entendo por gente, foi meu avô Phineas. Ele me criou sozinho, desde a morte precoce dos meus pais.
Pai da minha mãe, Bianca Flenty, Phineas Flenty era alguém até bem preservado. Com mais de cinquenta anos, ele quase não tinha cabelos grisalhos, tinha uma postura altiva e um porte quase militar. Não havia qualquer semelhança entre nós dois: meus cabelos, castanhos, e os dele, negros como a noite; meus olhos, azuis, enquanto os dele eram castanhos; e ele possuía traços bem marcantes, que me lembrava um guerreiro nórdico sem barba e bigode, enquanto meu rosto parecia o de uma estranha comparada ao dele. Muitos diziam que nem pareciamos ser avô e neta.
Assim que destranquei a porta do meu apartamento, joguei me no sofá da sala, cansada por ter escavado covas logo pela manhã.
Deitada ali, tentando reorganizar minha mente que estava num turbilhão que mesclava pensamentos e incompreensão, as lembranças daqueles estranhos sonhos onde mais de uma vez vi alguém ser iludido por uma criatura que conseguia mesclar sua forma, assumir a identidade de outras pessoas, o que me fez estremecer.
Eu não apenas via o horror no rosto daquela gente como também o sentia. Sentindo como um lixo, por ser a única pessoa capaz de ajudar mas não poder fazê-lo por estar confusa demais para tomar uma atitude.
Estava com medo de dormir e presenciar mais uma abdução, então liguei a televisão atrás do que muitos dizem ser a maior vantagem da TV: o fato de não precisar pensar muito para compreender o que está assistindo. Ou até mesmo de não precisar entender, apenas ficar onde está com a bunda grudada no sofá simplesmente por não ter nada melhor para fazer. Meu avô dizia me que isso estraga a mente, deixando a preguiçosa. Talvez seja por isso que eu assista: não porque eu goste (de fato não curto mesmo), mas sim para contrariar o que ele me dizia.
Senti uma leve movimentação sob mim, e com um pouco de esforço, consegui alcançar o meu celular que estava debaixo de algumas camadas de almofadas e de Ártemis. Ele ficara no mesmo lugar onde aterrisara quando o joguei ali ao passar com pressa para o que seria (melhor dizendo, o que foi) a minha pequena violação à covas no cemitério.
A primeira coisa que pensei ao pegar o aparelho foi que se tratava de alguma notícia de Sarah Tory, minha única, mas nem por isso menos especial, amiga.
Eu conheço Sarah desde o jardim de infância, e foi daí que nasceu e cresceu uma forte amizade. Eu não era o melhor exemplo de uma garota sociável, popular, não que eu não quisesse fazer amigos, longe disso,acontece que eu apenas ficava sem jeito diante pessoas que eu ainda não conhecia. Mas com Sarah, tudo veio de forma espontânea, e desde então não nos desgrudamos mais.
Havia alguns meses desde a nossa formatura, que aconteceu na mesma época em que descobri a verdade que meu avô escondia, e desde um incidente estranho que aconteceu durante a festa, quando um engraçadinho que tinha bebido além da conta achou que podia me encurrular no toalete. Por sorte, consegui me defender e quando fui pedir por ajuda, ele simplesmente desapareceu sem deixar vestígios. Mais tarde, naquela mesma noite, eu e Sarah nos falamos, e essa foi a última vez que tive contato com ela.
Logo depois minha vida virou de ponta cabeça.
Veio a verdade sobre o que Phineas Flenty
Estranho, pensei ao ver o que havia no visor. Não era Sarah.
Uma onda de desapontamento logo me invadiu por não ser a minha amiga, mas logo foi substituida por um estranhamento.
A mensagem que estava ali não provinha de nenhum número que me fosse conhecido, e o seu conteúdo... bem, foi inesperado.

Estou com saudades de você.
Nós podíamos nos encontrar novamente.
Preciso vê-la.
David Klein

Isso não pode ser verdade...
David Klein, e não Sarah Tory, foi o que mais me pegou desprevenida.
David Klein foi um dos meus colegas de escola, estudou junto comigo e Sarah há uns não sei quantos anos. Digamos que eu, em algum momento da minha vida, tenha tido uma certa quedinha por ele...
Por favor, não me julgue. Eu sou humana, era carente e inocente, e ele, capitão do time de futebol da escola, sarado, bonito, bronzeado e o sonho de consumo de metade do colégio, meninos e meninas. Por isso, ele nem olhava para mim, a garota de nome estranho, de poucas amigas e quase sem seios e bunda, uma maria-ninguém. Por muito tempo fiquei nessa de idolatrar o babaca que me ignorava até que caí na real e passei a me valorizar.
E agora, de uma hora para outra, ele me mandava um torpedo querendo me ver. Desisti de entender a mente masculina faz tempo.
O engraçado era que o número não era o mesmo que ele usava na época da escola, mas então, pensei: acontece muita coisa em seis meses, com certeza ele mudou de número. Mesmo assim, decidi ignorar. Havia muitas coisas com que me preocupar, e David ocupava a última posição dessa lista.
Havia os sonhos estranhos, os desaparecimentos reais que estavam, de algum modo, relacionados, e agora, a notícia de não-morte do meu avô.
Eu preciso encontrá-lo. Se tem alguém que pode me dizer o que está acontecendo, é ele. Ele sempre sabe das coisas.
Então, sem que eu percebesse, meus pensamentos foram interrompidos pelo som de passos no piso de madeira do apartamento.
Levantei-me do sofá com um pulo a tempo de ver uma forma se materializar no corredor. Uma forma masculina!
A sombra não me lembrava ninguém que eu conhecesse ou ao mais tivesse visto.
Neste momento, em minha mente vieram as lembranças das pessoas raptadas e me vi cheia de medo de ser a próxima vítima.
Mas do corredor, o que saiu não foi um cara esquisitão, de olhos flamejantes e sorriso predador. Saiu um garoto que aparentava ter a mesma idade que eu, usava um casaco militar branco e prateado, botas, calça jeans, óculos escuros e uma alvaja cheia de flechas e um arco em mãos.
Definitivamente, não se parecia com ninguém que eu conhecia.
Ele tinha a mesma altura que eu, pele branca, cabelos brancos espetados, e ao tirar os óculos ao me ver, percebi seus profundos olhos azuis.
_Você é Ártemis Flenty?
Como ele sabe meu nome? Trêmula, concordei com um gesto de cabeça.
Ele respirou aliviado:
_Ainda bem que consegui encontrá-la. Prazer - ele entendeu a mão - Sou Luke Travors. Preciso da sua ajuda: Charlotte Greater está de volta.
Não sabia o que dizer. Este tal nome me pareceu familiar por um momento, mas não sabia de onde...
Espere aí!  O que está fazendo Ártemis? Este cara invadiu seu apartamento! Quem é ele?

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