Capitulo 10: A primeira vítima

12 1 0
                                    

Aos poucos, os acontecimentos daquela noite foram voltando à tona, na minha memória, a medida que a porta se abria. Estava me preparando para ver o que havia sido feito daquele lugar na minha ausência.
Luke e Dylan comentavam algo entre si, mas eu não dera ouvidos.
Naquela noite, eu vestida como uma arqueira, sozinha, me aventurava para o interior da biblioteca enquanto meu avô enfrentava um monstro de dois metros de altura e Sarah corria pela casa em busca de qualquer coisa que servisse para arrombar a porta, mas acabou não sendo necessário.
Do mesmo modo que agora, aconteceu naquela noite.
Pousei minhas mãos sobre a superfície de madeira da porta, e nela apareceram as mesmas palavras em dourado.
Eu roubei esta criança!
Sem entender exatamente o porque daquelas palavras, entrei em busca da garota em perigo, que gritava por socorro.
Meu avô, Phineas, nunca me permitiu entrar ali antes. De todos os cômodos, era o que eu menos conhecia. Tentei diversas vezes sem sucesso entrar ali sem ser percebida, e em algumas faltou bem pouco para concluir este feito.
E ali estava a oportunidade de descobrir a verdade. Tempos depois, me arrependeria por não ter escolhido permanecer na ignorância, mas eu sabia que era impossível. Mais cedo ou mais tarde a verdade bate na sua porta.
Naquela noite, a Ártemis que entrara ali não era a mesma que abria aquela porta para mostrar a Luke e a Dylan o porquê da minha resistência em desenterrar o passado. Aquela Ártemis estava assustada e queria respostas.
Naquela noite de Halloween, descobri onde moravam os monstros reais...
_Ártemis!
Foi o que disse a garota ao me ver ali. Retribui um olhar misto de admiração e espanto, porque apesar de toda a situação, era a primeira vez que entrava ali. Sonhei tanto com aquele momento.
A garota era bela. Longos cabelos loiros com uma trança caindo sobre os ombros. Usava o que parecia ser uma fantasia de princesa: um longo e bufante vestido de época, nas cores vermelha e verde. Estava ajoelhada sobre o assoalho de madeira, no centro do aposento.
Atrás dela, estavam estantes,  à direita, a parede, e à esquerda, a porta dupla feita de vidro, escancarada, que dava acesso ao jardim.
Ela parecia soluçar, com ambas as mãos escondendo o rosto. Assim que entrei ali, ela chamou por meu nome e...
E não sabia o que fazer!
Como é possível que ela saiba meu nome?
Por um tempo, esse foi o meu questionamento, até que percebi a mim mesma me perguntando: Quem é ela?
_Ártemis!
Ela chamou por meu nome novamente, mas agora já era possível ver seu rosto. As mãos abaixadas na altura do peito, o seu rosto, pálido sob a lua, estava a mostra, tinha traços bem familiares, não aparentando ter mais idade que eu.
Meio que sem saber o que fazer, atravessei o cômodo a passos nervosos, enquanto não conseguia desviar a atenção daquele lugar. Mesmo no escuro, eram evidentes a mobília exótica, as peças antigas nas paredes e mostruários, e a coleção nada pequena de livros históricos. Havia uma escrivaninha ali perto da porta com acesso ao jardim.
Deve ser ali que meu avô trabalha.
Ao olhar para aquele móvel, me lembrei da luta que ainda ocorria ali fora. A horrenda criatura que surgiu da floresta e impediu nossa saída, agora, parecia rosnar menos. Talvez estivesse acuada, ou quem sabe, morrendo, mas pouco importa. Eu mesma teria lhe acertado uma flecha se não fosse por aquela garota em perigo.
Quando cheguei até ela, curvei-me para ver se ela estava ferida ou algo assim, mas ela me surpreendeu. Quando percebi, estava envolvida em um forte abraço. Sem entender, fiquei imóvel, os braços pendendo junto ao corpo, enquanto ela soluçava e murmurava alguma coisa no meu ombro.
_Ártemis!
Essa era a única coisa que eu a ouvia dizer. Meu nome. A impressão que eu tinha era de que, de algum jeito, ela me conhecia, e apesar de toda a situação e da leve familiaridade que ela me transmitia, eu não podia dizer o mesmo.
Um pontada nas costas fez com que eu recuasse. O que senti foi algo muito próximo de uma agulha que espetou a minha pele na altura dos ombros, bem onde se localizavam as mãos daquela garota.
_Que bom que você tenha atendido ao meu chamado, Arty - disse ela, se levantando - Temos muito o que conversar.
Sua expressão mudou radicalmente. A garota amedrontada deu lugar à uma outra com uma aparência que podia representar várias coisas, menos medo.
Não sei se foi o susto do momento, mas por algum motivo, talvez algum reflexo, mas quando notei, já estava a puxar uma das flechas na aljava e, no segundo seguinte, já estava com ela pronta para atirar, com a garota na mira.
Ela , agora de pé, revelava que de assustada e indefesa não tinha nada. Estava fingindo.
Cheguei à essa conclusão quando percebi as enormes unhas que ela possuía, e como elas estavam sujas de sangue. Talvez fosse do meu sangue, de quando ela cravou as unhas nas minhas costas.
Agora, ela sorria. Não um sorriso de alegria, mas um que me inspirava medo. Parecia se divertir com o meu espanto.
Vestida daquele modo, como se fosse uma princesa medieval, pensei que fosse alguma roupa para o Halloween. Se a roupa transmitia uma imagem de inocência, seu sorriso malicioso contrapunha tudo o que ela emanava.
_Oh, Arty, por que está me apontando isso? Não sou nenhum monstro.
Sua voz agora estava calma. Não havia nenhum resquício de desespero, e parecia bem segura de si. Ao vê-la assim, percebi que a mensagem que ela antes buscava transmitir, de fragilidade, era falsa. Não estava correndo perigo nenhum, e toda aquela situação que ela montou, provavelmente, era para me atrair até ali.
Redobrei minha atenção, e passei a segurar a flecha com ainda mais força. Estava disposta a soltá-la a qualquer momento.
_Ártemis, querida, não precisa atirar uma flecha em mim. Não estou aqui para lhe fazer mal - dizia ela, bem calma e serena - Vim lhe contar a verdade.
A verdade.
Ao ouvir essa palavra, por algum motivo, me senti insegura.
_Quem é você? - perguntei, tentando investir numa ofensiva.
_Posso dizer que tenho vários nomes - diz ela, rindo, se divertindo como se lembrasse de uma piada contada tempos atrás - Pode me chamar de Julia, ou de Mirella Crawford, se achar melhor, mas prefiro pensar que sou uma mensageira.
Todo o discurso de Mirella começava a me confudir. Não sei se minha cara de confusa estava tão aparente assim, mas se sim, ela simplesmente ignorou e continuou a falar.
Ela se aproxima de mim, aproxima as mãos com as unhas protuberantes em direção ao meu ombro, mas o afasto, receando perder mais sangue.
_Vim libertá-la, Arty.
O modo como falou meu nome, o tom de voz, o jeito como me chamou, tudo, me fez sentir arrepios na espinha.
Me afasto um pouco para trás, a flecha ainda em prontidão.
_Me libertar? Do que está falando?
_Falo da mentira que vive aqui, com Phineas - ela me encara de frente agora, convicta - Essa não é você, Ártemis.
Essa não sou eu?
O modo como aquela garota falou comigo me deixou apreensiva.
Mirella não parecia nem um pouco confiável, e as informações que ela passava ainda menos. Mas, no fundo, aquilo me deixou curiosa a ponto de perguntar:
_Então, quem sou eu?
Ela sorri. E o fato dela sorrir me faz assumir uma postura ainda mais atenta.
_Você não é a garota neta do velho livreiro, que vive isolada no meio do bosque. Você é parte de uma lenda, Arty. E por isso, vive uma farsa, encenada para fazê-la crer que você é como as outras garotas. Você é como eu.
Olho para ela com um olhar de incompreensão. Ela parece ser uma lunática, tudo o que diz é muito confuso, e nada nela me inspira confiança.
_Não acredita em mim?
_Nem um pouco - respondo, quase rosnando - Não sei do que está falando, e quero você fora da minha casa, agora!
_Já imaginava que não fosse acreditar em mim, então fiz questão de chamá-la aqui. Por que não dá uma olhada na mesa do seu querido avô?
Um jogo psicológico. É isso que ela está tentando fazer comigo. Está tentando instalar curiosidade, dúvida, receio em mim, a fim de que eu abaixe a guarda. Mas não o faço.
Não posso negar que algo dentro de mim me tenta, levemente, a acreditar no que ela diz.
Mirella, com seu jeito felino, aponta para a escrivaninha. As unhas cheias do meu sangue, um sorriso mortífero e um olhar desafiador. Nunca fui de fugir de desafios, e não pretendia começar tão cedo.
A imprudência reina em mim quando a razão perde o controle. Agindo na base da emoção, me dirijo rapidamente ao lugar indicado pela louca.
Temendo que ele tentasse fugir ou me atacar enquanto estivesse desprevenida, miro lhe a flecha novamente, o mais rápido possível, mas percebo que Mirella está imóvel. Seu tom é de desafio.
Nesse meio tempo, sinto a ausência de meu avô e Sarah. Ele, lá fora lutando contra aquela fera, e ela...
Não consigo evitar a lembrança. Os gritos dela inundam o ar. Desespero em cada sílaba.
Ela chama por meu nome, e bate na porta que se fechou sem que eu notasse. Ela está aterrorizada, eu sei, mas... é muito egoísta da minha parte, mas estou tão perto de descobrir o que meu avô tinha ali. Obviamente não eram documentos da Neverland, e eu tinha meus motivos para crer nisso.
Mirella já não está mais no centro do aposento. Está sentada na mesa, a minha frente, mas não me importo. Estou focada demais nos arquivos que estavam ali para me preocupar com ela.
Sobre a mesa, há vários papéis espalhados. É uma desordem típica do público masculino, mas o que vejo ali me deixa impressionada devido à tamanha diversidade de documentos.
São, grande parte, recortes. Reportagens antigas, inquéritos, e manuscritos de um livro feito a mão com aparência de velho. E há documentos recentes, exames médicos e pesquisas feitas na Internet. E fotos.
_Você não sabe, Arty - disse Mirella - Mas Phineas Flenty lhe esconde muitos segredos.
Estupefata com o que tenho em mãos, deixo de me preocupar com aquela garota. O dossiê se torna o meu foco principal.
Os primeiros documentos relatavam um desaparecimento. Num jornal britânico de dezessete anos atrás, estava a foto de uma garota que sumiu sem deixar rastros.
Era primavera, e toda a família saiu para fazer um piquenique no parque: o pai e a mãe, a filha de dois anos de idade e o caçula, um bebê de três meses.
A família jamais imaginou que, o último vislumbre da filha que teriam seria a imagem dela correndo atrás de uma cintilante borboleta. A mãe, uma jovem em prantos, descreveu como pediu à filha que não se afastasse muito, mas de nada adiantou. A polícia a procurou por todo o parque, mas fora inútil: a garota evaporara.
Pelo número de reportagens diferentes retratando essa mesma notícia, ficou claro para mim que aquele caso jamais foi solucionado. Da garota, restou apenas fotos dela, sorridente, a olhar para a câmera.
Ela tinha um rosto meigo, um sorriso sapeca, longos cabelos encaracolados, o retrato da inocência.
Seu nome, Diana Hawks.
Juntos à todo esse material, estão páginas descritas a mão do que parece ser um livro bem antigo. Caligrafia carregada, mas impecável, tento sem sucesso decifrar seu conteúdo, mas encontro palavras-chave: feitiços... maldição... fênix... os cinco Blake... floresta negra... ira... imortalizados... trilha de sangue...
_É muito preciso o que tem em mãos, Arty - continua Mirella - Sua vida está toda retratada aí.
Minha vida?
Não tenho tempo para contestar porque encontro mais papéis reveladores.
É parte de um inquérito. Mas não é de um inquérito qualquer. É o da morte dos meus pais!
Anos atrás, perto do litoral, uma casa de praia desabou após um forte temporal, matando minha avó, Grace, e meus pais, Angela e Ethan. Mas o que estava ali dizia o contrário.
Segundo o documento, a casa realmente caiu, e a causa ficou sendo considerada misteriosa, pois acreditava se que possuía uma sólida estrutura. Mas o incidente vitimou apenas uma pessoa: Grace Flenty. Segundo o mesmo, o marido, Phineas, havia saído para pescar durante o ocorrido, e entrou em estado de choque porque...
_Eles não tinham nenhum filho?
Indago em voz alta, sem entender. Se não tinha filhos, como poderia ter uma neta? Minha própria existência, naquele meio, se tornou inviável.
E então, me lembro de Diana Hawks. Pego desesperadamente a foto com o seu lindo rostinho. Estou tremendo porque ainda me lembro das palavras na porta.
Eu roubei esta criança!
_Isso não pode ser verdade.
_É a mais pura verdade, Arty. Se ainda não acredita, pergunte à ele - Mirella indica com o dedo, a porta da biblioteca.
A porta se abre, e quem vejo é um Phineas bufando de desespero, olhos esbugalhados e nervosos.
Sara está logo atrás, ainda sem entender.
_O que está fazendo aqui?
Pelo seu tom de fúria, percebo que ele não se dirigia à mim.
_Vim fazer uma pequena visita à minha amiga. Havia muitas coisas que ela precisava saber.
Ele olha para mim e percebe o que tenho em mãos. Lágrimas escorrem do meu rosto quando encontro o dele. Por um momento, ele está em choque, mas no outro, irado.
E aconteceu.
Mirella ria, com desprezo e ironia aparentes em sua voz, enquanto meu avô retirava algo de dentro do casaco. Ao fazê-lo, ela parou de rir e saltou de cima da mesa. Por reflexo, impulsionei a minha cadeira que tinha rodinhas nos pés,  para trás, prevendo um ataque.
Uma brilhante bolha de energia explodiu no lugar de onde ela estava, e a mesa fora arremessada para trás.
Tanto eu quanto Mirella estávamos ilesas, e quando percebi, ela olhava para meu avô. Pela primeira vez, vi uma aparência de susto e medo verdadeiras em seu rosto.
Meu avô estava a poucos metros, com o que parecia ser um amuleto, mas diferente de todos que já havia visto, este tinha a forma de um cordão com um pingente enorme, talhado em uma pedra escura. O brilho incandescente provinha daquele objeto.
_Saia logo daqui!
Ele berrou como jamais havia visto berrar. A casa pareceu tremer com o poder de sua voz.
Mirella, ainda com seu vestido de princesa, olha para mim pela última vez.
_Nós veremos novamente, amiga.
Um par de enormes asas negras surgem das suas costas e ela alça voo pela porta com acesso ao jardim.
Meu avô corre até lá, e a tranca. Quando olha para mim, o que vê é indignação.
_Arty, eu posso explicar...
_Por que escondeu isso de mim? - pergunto, com alguns papéis ainda em mãos.
_Eu ia te contar, juro. Só estava esperando o momento certo...
_Certo para que? Para que eu compreendesse que o que fez foi errado? Há motivo para eu acreditar nisso?
Ele não responde. Está mudo. Me levanto para sair dali. Impulsiva, naquele segundo decido sair de casa. Sara ainda está sem entender, mas me acompanha até o meu quarto e me ajuda a fazer as malas. Pego o máximo que e enfio de qualquer jeito na bolsa.
Meu avô tenta me impedir, mas é em vão. Estou determinada demais para voltar atrás.
Entro no carro, e Sara vem comigo. Ela também quer que eu fique, que me acalme, mas quando percebe que não o farei, me segue sem dizer nada.
Saio, deixando meu avô para trás, em prantos. Ele grita por mim. Pede a Sara que cuide de mim, como se ela fosse minha mãe.
Minha mãe.
A ideia me deixa emocionada.
Sarah ainda quer respostas, então estendo à ela um último papel em minhas mãos.
Um possível retrato da garota desaparecida, Diana Hawks, adolescente.
Sara se espanta, e não a culpo.
O rosto ali se parece tanto com o meu que não tenho a menor dúvida: eu sou Diana Hawks.

O Poder das LendasOnde histórias criam vida. Descubra agora