Capitulo 4: A livraria do velho lobo

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O que você acaba de fazer Ártemis?
Às vezes, quando estou muito nervosa, tomo atitudes infantis. Mas aquilo foi além do limite.
E daí que ele estava me beijando?  Não há justificativa para isso. Eu o matei!
Bufando, inspirando e expirando lentamente, acalmando me na medida do possível.
E parecia que eu nem saira do apartamento porque a imagem dele ainda estava viva, lúcida em minha memória. Ele... caído, em meio à destroços, desacordado. Possivelmente sem vida.
Sou um monstro!
Foi em legítima defesa sim, mas também foi um exagero. Ato impensado, culposo.
Mas ainda sim o sentia. Com o dedo entre os lábios parecia que eu ainda o sentia a me beijar. Tão próximo, de corpo e mente.
A cena se repetia na minha mente: eu, ainda abraçada à ele, Luke me perguntando "Lembra-se de mim agora? ", ou algo assim. E aconteceu...
A porta do elevador se abriu, trazendo me volta ao estacionamento onde minutos antes deixara o carro usado pela delinquente depredadora de túmulos, com o mesmo desespero que senti ao notar que um estranho invadira o meu apartamento, me abordara, beijou me, e me fizera ver coisas que há muito tentei esquecer.
E eu gostara.
Meu Deus, como pude sentir prazer disso tudo? Do beijo, do toque... Luke...
Devo conhecê-lo de algum lugar, mas de onde?
As lágrimas escorriam em meu rosto, não sei se pelo medo ou pelo susto, nervosa, trêmula.
Por sorte o lugar estava vazio. Não queria ver ninguém, falar ou ter que ouvir o cumprimento de qualquer pessoa porque, poxa, o dia só ia piorando com o passar dos minutos.
Por conta do nervosismo, levei algum tempo até conseguir abrir a porta do meu carro. A chave dançava em minhas mãos ao ritmo do meu coração pulsante.
Ao me sentar no banco do motorista, fechei a porta com uma batida e abri o porta-luvas atras do pó compacto que sempre guardo para emergências.
Sem dúvida alguma, esta é uma emergência!
O ruim é que um simples espelhinho não ia resolver todos os meus problemas, mas ia me servir para não sair com a aparência de alguém que havia brigado com um urso vivo, uma luta em que o animal havia vencido.
Por mais que me esforçasse, ficava evidente, apenas de olhar para mim, que havia algo de errado, e isso maquiagem nenhuma podia disfarçar.
Saí do estacionamento o mais devagar possível, enquanto parte de mim queria pisar fundo no acelerador para fugir do que havia acontecido ali, outra parte queria sobreviver durante o percurso do meu prédio à Neverland Books.
Flashes da cena que eu acabara de vivenciar ainda dançavam diante meus olhos. O baile de máscaras, o casal, o tiro...
Meu estômago embrulhava só de pensar. As semelhanças me assustavam.
Luke Travors em muito se parecia com o homem no sonho, e isso era evidente até mesmo com a fantasia, embora Luke parecesse um pouco mais jovem e seu cabelo, branco pela neve.
Só de lembrar dele, meu corpo se eriçava. Seu toque me era familiar, mas porque?
_Saia da frente, sua toupeira! Acelera!
Sons de buzina e gritos me pescaram de volta a realidade, que naquele momento era composta de um homem em um esportivo atrás de mim, reclamando do meu ritmo de tartaruga no trânsito.
É melhor se apressar caso contrário vai chamar ainda mais atenção se continuar a obstruir a passagem.
Pisei um pouco mais fundo no acelerador e rumei por uma outra avenida, deixando o motorista grosseiro para trás.
Lembra-se de mim agora?
Cinco simples palavras que me fizeram estremecer. A voz de Luke que soara carinhosa comigo em seus braços. E eu olhava para o fundo dos seus olhos.
Então, fui invadida pelo pavor: como pude gostar daquele beijo de um estranho que invadira meu apartamento, armado, dizendo que me conhece? E o que está acontecendo?
E do nada, aconteceu.
De início, senti meus braços formigarem, os dedos pareciam queimar e senti um poder muito vivo dentro de mim.
E no segundo seguinte, a situação saiu do controle.
Estava nervosa, amendrontada, não que Luke parecesse um monstro, mas talvez por eu ser como um camundongo medroso, que em situações de desespero age sem pensar. E foi o que aconteceu.
_Se afaste de mim - minha voz soara fria, ameaçadora.
_Por favor Arty, me escute por um minuto...
A voz dele era atenciosa, doce. Não oferecia perigo, mas mesmo assim...
Senti que algo que algo dentro de mim queimava, querendo extravasar e eu simplesmente permiti.
_Eu pedi para se afastar...
Dessa vez, não dei tempo nenhum para Luke reagir. Uma força semelhante à uma rajada de vento surgiu, não sei de onde, atravessou meu corpo como se fizesse parte deste e saiu da palma da minha mão.
O que vi em seguida foi Luke ser arremessado à um metro de altura do chão, batendo em cheio as costas na parede da sala e pousando em cima de um antigo aparador de metal que meu avô comprara em um antiquário, que desabou com o impacto, preenchendo o ar com um estrondo de metal partindo, vidro se partindo e corpos rolando.
Imóvel, assusti à tudo aquilo sem entender o que de fato aconteceu. Luke gemeu por um instante, e passado um segundo, se calou. Estava apagado, caido sobre meu piso, o casaco militar amarrotado parecia ter protegido lhe o tronco mas a cabeça com a cabeleira grisalha estava imóvel, as flechas se espalharam, agora a mostra as pontas pontiagudas e mortais de metal. Então percebi o que havia acabado de fazer e saí desesperada, sem me preocupar em fechar a porta.
O que você acaba de fazer Ártemis?
Os pneus cantaram sobre o asfalto assim que estacionei em frente à fachada da livraria.
Ao sair desesperada do apartamento, deixando Luke para trás, a primeira coisa que me veio à cabeça foi ele: Phineas Flenty.
Luke o mencionou.
Ele devia ter me contado alguma coisa mas não o fez.
E ele estava vivo! Mentira até na própria morte!
Ele está envolvido nisso! Da cabeça aos pés! Sem dúvida que está!
A qualquer lado que olhasse, o retornava à minha mente era sempre ele, então decidi ir até o lugar mais cheio de lembranças e coisas associadas à ele. A sua livraria!
Quer dizer, aquela altura, a livraria, Neverland Books, passara a ser minha depois da morte... ou falsa morte... seja lá o que for! Meu avô continuava a me deixar confusa, mesmo ausente.
Com o carro estacionado rente à calçada, não hesitei e peguei o molho de chaves do interior da minha bolsa e abri a porta da frente.
A Neverland Books não passava de um estabelecimento cujo nome plagiado se encontrava à mostra num letreiro três metros acima do chão, composto por vitrines de ambos os lados da porta por onde entrava a clientela. Nas vitrines, prateleiras e estandes de livros procuravam atrair o olhar dos passantes, possíveis clientes.
Ao entrar, fiz questão de trancar novamente a porta e me afastei para o interior da loja.
Por dentro, a Neverland Books não havia nada de tão impressionante assim.
Assim como a fachada, era composta por paredes brancas sem graça em paredes antigas que me lembravam edificações do início do século passado. O piso era de madeira, já encardido, e recobriam todo o assoalho do local que aparentava ser do tamanho de um restaurante. Gostaria de saber a que preço meu avô Phineas comprara aquele lugar, considerando suas dimensões e o ponto que ocupava...
Era aqui onde ele dizia estar quando saía à noite. Como pude ser tão tola?
Meus passos ecoaram assim que parei diante o balcão de mogno, onde estava o caixa, um velho computador e outras parafernálias típicas, como fita adesiva e cartões do nosso estabelecimento familiar.
As estantes entupidas de livros pareciam mais frias naquela manhã. Havia meses que eu me dedicava para manter funcionando aquele lugar: meu ganha-pão e herança do meu avô.
Tudo ali me trazia ele à memória. Cresci acompanhando-o àquele lugar, onde ele ficava um longo tempo a divagar sobre cada volume das prateleiras.
E era ali onde eu decidira buscar respostas para o problema que eu tinha: havia muita coisa em que evitei xeretar no seu escritório ali, atras do balcão, mas eu tinha uma investigação a fazer.
Atravessei a bancada, peguei as chaves e escolhi a que destrancava o trinco do escritório quando fui surpreendida pela terceira vez naquele dia.
_Que bom que você chegou Ártemis. Você era a pessoa que eu estava procurando.
Me virei e encarei de frente a mulher que saira de trás de uma das estantes.
Como ela entrou aqui?
Usava saltos ponta-agulha, vermelhos, uma sobretudo claro, óculos escuros, chapéu estiloso, deixando lhe a mostra os longos cabelos ruivos, vermelhos como os sapatos e o batom. A voz era felina, mas familiar...
_Precisamos ter uma conversinha, Arty.
Não sei o que mais me assustou, se foi a surpresa da situação em si ou a identidade daquela mulher.
_Você?

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