Capitulo 8: Um amigo já esquecido

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Andar por aqueles corredores fez despertar vários fantasmas já esquecidos.
O chão ainda rangia um pouco a medida que seguia Luke, como se ele fosse o anfitrião e eu a convidada. De certo modo, talvez fosse isso mesmo, levando em consideração que já jurei à mim mesma não voltar ali.
Tudo me trazia ele à memória, meu avô Phineas, direta ou indiretamente.
Os retratos nas paredes, as portas fechadas, até mesmo a opaca luminosidade daquele lugar me lembrava o passado.
Mentalmente vou mapeando os lugares por onde passamos, e é inevitável não pensar em como estaria agora que meses se passaram e eu voltara para a minha primeira casa.
Meu avô nunca gostou muito da cidade, de modo que a nossa casa ficava no meio de um bosque. Pela janela vi a cerca já em cacos que estabelece a divisa da propriedade onde morávamos separando do bosque cheio de pinheiros que se fazia presente a nossa volta.
A casa em si não transmitia nenhum ar de riqueza ou prosperidade, mas quando criança insistia em dizer que morava em um verdadeiro castelo, e meu avô brincava, dizendo que nossa casa parecia mais com a da bruxa má da floresta. Ele já discordava de mim naquele tempo.
Era estranho o modo como Luke se sentia à vontade ali, e parecia estar mais familiarizado com a residência que eu. Não o culpo. Se ele tivesse passado pelas mesmas situações que eu, aposto que não sentiria o contrário...
_Precisa de ajuda para descer as escadas, Arty?
Naquele instante ficou registrado que o cavalheirismo era um dos atributos de Luke. Não bastava ser bem apessoado, tem sempre que ter algo a mais, era o que meu avô sempre dizia para mim quando o assunto era garotos ou qualquer "namoradinho" da escola, como das vezes em que eu lhe falava sobre David Klein, o rapaz boa pinta por quem eu tinha uma queda.
Enquanto eu aceitava gentilmente o apoio de Luke para descer as escadas rumo ao ao nível inferior, percebi que no dia anterior eu havia recebido uma mensagem no meu celular com remetente de David, dizendo que queria me ver, mas sem dizer o porquê. Acabei me esquecendo disso por causa de todo o ocorrido com Luke e Sarah, mas prefiri esquecer o assunto por enquanto. Estava curiosa, para não dizer aflita, para descobrir à quem Luke se refiriu quando disse que precisava me mostrar à alguém.
Será que há mais alguém na casa?
Balançando como sempre, a escada rangeu sob nosso peso a medida que aos poucos descíamos pelos degraus encardidos.
Ao colocar meus pés novamente naquela sala, percebi quanto tempo passara desde que eu fora embora.
A casa era ampla, com dois andares e uma velha escada de madeira que os ligava, e ainda havia o sótão e o porão. Construída há muito tempo com um estilo arquitetônico típico de casas mal assombradas dos filmes de terror, mas de assustador mesmo só havia os ruídos do encanamento.
As paredes eram revestidas de modo conservador, pintadas com cores clássicas e expressivas, e ali na sala de visitas, havia algumas das antigas peças de antiquário que decoravam toda a casa. A mobília mesclava conforto e serenidade, e muitas peças eram restauradas devido muitos anos de uso.
Rever a casa onde fui criada me causou mais impacto do que eu havia imaginado, porque mesmo sabendo que uma hora ou outra eu teria que voltar ali. Não imaginava que tudo ocorreria de modo tão inesperado, assim como foi tudo nas últimas vinte e quatro horas.
_Está tudo bem com você, Arty?
A voz de Luke soava cuidadosa agora, e a preocupação que ele demonstrava por mim só fazia eu querer ainda mais me lembrar dele do mesmo modo que ele dizia se lembrar de mim. Não foram necessárias palavras porque só de olhar para mim ele notou que havia algo ali que me incomodava, o que me fazia pensar o quão bem ele de fato me conhece...
_Apenas é estranho ver como tudo ainda está no seu lugar... -neste momento, olhei diretamente para ele - Parece que o tempo não passou por um segundo sequer.
Fui em direção à janela, de onde afastei as cortinas com cheiro de mofo e mordidas de traças e me deparei com o velho jardim que eu e meu avô plantamos anos antes, mas que graças ao abandono, crescia desordenado, com os canteiros de flores rebeldes, as pequenas árvores e arbustos a se desenvolver sem cuidados e as plantas daninhas a se espalhar.
Ainda estava a fitar o velho e abandonado jardim, onde eu passara uma parte significativa da minha infância quando atrás de mim surgiu outra voz que me pareceu familiar, mas que assim como Luke, não me fora apresentada.
_Luke, ainda bem que te encontrei. A garota ruiva acaba de acordar.
Uma voz masculina, um pouco mais grave que a de Luke, mas ainda assim suave. Meu coração agora estava aos pulos.
_E como está a Arty?
Arty. Ele me chamou pelo mesmo apelido que Luke usara.
Viro-me a tempo de ver Luke fazendo um sinal com a cabeça para o lado da sala onde eu me encontrava parada. O outro rapaz era loiro, cabelos espetados e rebeldes como os de Luke, olhos verdes e felinos, assim como o rosto dele, fino com traços suaves, mas másculos. Aparentava ter a mesma idade que Luke e eu, e usava botas de caça, jeans manchados e uma camisa estampada com algumas figuras estranhas.
Ainda estava ali parada quando vi sua atenção se deslocar para onde Luke apontava e a surpresa ao me ver.
Eu definitivamente o conheço, mas como...
Quando notei, tive meus pensamentos interrompidos assim que ele reagiu de forma bem amigável.
Seus braços, embora não pareçam, eram fortes, e assim que ele me abraçou, me vi erguida do chão a medida que o garoto sorria e dizia meu nome sem parar. Um misto de surpresa e estranhamento que me invadiram rapidamente deu lugar à uma descontração que eu não sabia de onde vinha. Comecei a rir, meu riso misturado ao dele enquanto ele me girava em seus braços, e ao me por de volta ao chão, senti o calor fraterno que ele emanava e as feições de uma criança estampada em seu rosto.
O que posso dizer é que gostei dele no primeiro momento em que o vi.
Quando dei por mim, pensei no que Luke estaria pensando, por causa de todo aquele lance que aconteceu no meu quarto e tal, mas ele permanecia calmo, e até parecia se divertir com a situação.
_Arty, que saudade eu senti de você!
O loirinho ainda olhava para mim, e naquele momento percebi que ele também era muito bonito, tanto quanto Luke, mas por algum motivo eu só o vi como um bom amigo.
_Vai com calma, cara - aconselhou Luke - Ela ainda não se lembra de nada.
_Mas isso é por pouco tempo - respondeu o outro cara - E além do mais, já é um alívio revê-la depois de tanto tempo.
Olho para seu rosto e vejo seus olhos brilhantes. Me ver realmente o deixou muito entusiasmado, e mesmo sem saber quem ele era, me simpatizei com ele.
_Além de que - continuou ele, em tom de brincadeira - Aposto as calças de Jeromy McLeon que ela ainda se lembra do meu nome.
_Não seja palhaço...
_Espere, Luke. Não fale o meu nome. É melhor deixar a nossa velha amiga Arty se lembrar.
Impossível . Como vou me lembrar do nome de alguém que acabo de conhecer? Ele só pode estar brincando...
O pior é que não era brincadeira. Ele olhava para mim, esperando por alguma resposta minha, mas o que eu ia dizer? Que eu não o conhecia e que não tinha a mínima ideia de qual seria o seu nome? De que ainda não fomos apresentados para que eu tivesse em mente essa informação?
Os inquisidores olhos verdes me encaravam e neles pude ler: por favor acerte ou terei que enfiar minha cabeça em um buraco como um avestruz, e decidi fazer um esforço.
Olhando para ele, seu rosto que me era familiar, o sorriso travesso que ele tinha em seus lábios, e tentava imaginar que nome teria alguém com tais características.
Os cabelos loiros.
Os dentes brancos.
Os olhos verdes.
O rosto belo e travesso que ele tinha...
Não sei ao certo como, mas ao observá-lo assim, um nome se formou em minha mente, e quando percebi, já estava pronunciando:
_Dylan...
_Como disse? - perguntou ele.
_Dylan!  - respondi, agora falando um pouco mais alto.
_Não acredito.
Dessa vez quem disse foi Luke. Virei para ele e disse:
_O que foi?
_Você acertou.
_Acertei?
Acertei? Mas como isso é possível.
O garoto loiro, agora já identificado como Dylan, sorria de orelha à orelha enquanto dizia:
_Eu disse que ela se lembraria do meu nome.
Eu estava estupefata diante todo o momento que acabara de acontecer ali, comigo adivinhando o nome de um estranho como se fosse uma adivinha ou algo do tipo.
Dylan estendeu a mão direita e disse:
_Então permita que eu me apresente novamente: prazer, sou Dylan Rhodes, seu velho e esquecido amigo de infância.
_Ainda não acredito - disse Luke.
_Eu também não - respondi.
Eu estava rindo porque mesmo tudo aquilo sendo estranho, era ao mesmo tempo inusitada a coincidência que acabara de acontecer.
Luke começou a rir também, logo éramos dois bobos da corte rindo sem motivo.
Dylan também parecia se divertir com toda a situação, mas de uma hora para outra, sua expressão endureceu repentinamente. O mesmo aconteceu com Luke, que parou de rir assim que percebeu o quão sério ficou Dylan, olhando para o alto da escada.
Parei de rir antes que se instalasse um silêncio incômodo. Não posso negar que nesse momento senti um pouco de medo.
_Luke, - disse Dylan - ela acordou.
Ela? De quem ele está falando?
_E o que ela falou, Dylan?
_Ela ainda está confusa, Luke. Mas pelo o que ela falou, tudo indica que seja mesmo Charlotte.
Charlotte. Eu já havia ouvido aquele nome. Foi o mesmo que Luke mencionou quando Luke invadiu meu apartamento. Era alguém que supostamente havia voltado de algum lugar que não sei direito, e que para preocupar aqueles dois rapazes daquele jeito, com certeza representava perigo.
_Acredita mesmo que seja ela?
_Não sei, mas eu não me espantaria - continuou Dylan, enquanto eu só observava - Isso explicaria os acontecimentos estranhos que tem ocorrido nos últimos tempos.
Acontecimentos estranhos. Mesmo sem saber exatamente do que estavam falando, algo dentro de mim dizia que os meus sonhos estavam, de certa forma, relacionados.
_Ela falou mais alguma coisa?
_Falou sim. Ela relatou alguns fatos confusos, o que me leva a crer que há Benevolentes metidos nisso.
Benevolentes. Esta estranha palavra, por algum motivo, me soou familiar.
_E há mais uma coisa.
Dylan agora estava preocupado, e ao vê-lo preocupado, também fiquei preocupada.
_O que é?
_Ela se referiu aos Blake várias vezes.
Luke agora mergulhou em seus pensamentos, obviamente surpreso e preocupado. O mesmo aconteceu comigo.
Lembrei de Sarah na Neverland, gritando "Morte aos Blake" enquanto o lugar se desfazia em vento. Arrepiante...
_Do que vocês estão falando?
Dessa vez fui eu que indaguei.
_É uma longa história, Arty...
_Então conte-me Dylan. Não tenho a menor pressa.
Meu tom de voz saiu mais rude que o pretendido mas não me arrependi. Ainda encarava os dois em busca de explicação.
_Nós vamos te contar tudo, Arty, - continuou Luke - mas antes precisamos que você nos conte o que viu naquele escritório meses atrás.
Ele estava sério agora. Seu tom de voz também demonstrava a importância daquela afirmação.
O que? Por que isso agora?
Era doloroso pensar naquilo, e minha vontade era de esquecer tudo aquilo, mas agora... Eles pediam que eu revelasse o que havia visto, mas por que?
_Não vejo como isso vai ajudar...
_Por favor, Arty - dessa vez não foi nenhum dos dois que respondeu - É importante você revelar a verdade.
E descendo as escadas, estava aquela à quem Dylan estava se referindo. Seus cabelos ruivos presos em um rabo de cavalo, Sarah estava serena, sem aquela presença sufocante em sua voz.
_Você precisa dizer o que sabe -ela disse parando ao pé da escada - Comece contando o que vimos no último Halloween.

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