Capitulo 6: O Globo do Gladius Plaza

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Estou sonhando...
Desde pequena, sempre tive certa consideração com os sonhos. Aprendi a valorizar seus significados quando ainda era uma garotinha na flor da idade, uma criança sem pai nem mãe, apenas com um avô coruja. A garota que morava fora da cidade, em uma casa antiga em meio ao bosque, que brincava de imaginar que o lugar era mágico.
Meu avô Phineas era fantástico! Ao contrário da maioria dos adultos, que diriam que não passam de bobagens, ele me incentivava afirmando que ali perto do nosso quintal morava toda a sorte de criaturas mágicas: de fadas e duendes à dragões e lobisomens.
Além dessas fantasias, ele fazia questão de me ouvir falar de cada sonho que eu tivesse durante a noite: desde o mais comum ao mais sem sentido ou estranho. Ele costumava me dizer que o que vemos quando estamos dormindo ou é um reflexo do que estamos sentindo ou algum sinal de algo prestes a acontecer, então ele me ensinara a memorizar os sonhos, o que, acredite, é muito difícil. E essa habilidade, por mais incrível que pareça, me seria muito útil após o meu reencontro com Sarah, que voltara totalmente transformada do seu desaparecimento meses atrás, onde fora levada no meu lugar.
A partir daquele momento em que detonei com toda a livraria da minha família, minhas lembranças se tornaram um único borrão, onde a visão era falha e confusa e a audição era ausente, pois não sabia distinguir mais os sons externos das batidas do meu coração, que batia rápido, nervoso.
Deitada no chão e com a cabeça latejando, eu avaliava a situação do que havia sobrado da loja. As estantes estavam tombadas, amontoadas umas sobre as outras, os móveis foram arrastados e estavam amontoados no chão, parte deles destruídos. Os livros estavam espalhados pelo chão, o teto estava dilacerado parte dele já havia caído e levantado uma nuvem de poeira.
Eu estava esgotada. Meus músculos não respondiam aos meus comandos, parecia que eu havia caído e rolado morro abaixo por uns cem quilômetros, estava toda dolorida e quase sem fôlego.
Será que Sarah se machucou?
Mesmo depois do que acabara de acontecer, me preocupava com ela porque anos de uma amizade como a nossa não podem ser jogados fora assim, de uma hora para outra.
Como cheguei à esse ponto?
Ainda me lembro de como era meses antes, sem muitas amizades e aventuras, mas ainda sim feliz, porque eu sabia quem eu realmente era. Agora, estava confusa, com medo, desolada, sem entender o porquê de tantas coisas ruins estarem acontecendo comigo, os sonhos ligados aos desaparecimentos que estavam acontecendo, a morte encenada do meu avô e Sarah. O que aconteceu com ela foi culpa minha, mas por que? O que fiz de tão grave para merecer tal castigo?
Com os pulmões doendo, a cabeça prestes a explodir, senti o chão sob mim repleto de pedaços mínimos de vidro. A porta do escritório estourara com a pressão do que acabara de acontecer. Eu imaginei o cofre lá dentro, intocado, com os segredos de Phineas Flenty guardados. As minhas chances de descobrir o que estava acontecendo pareciam tão distantes agora.
Milhares de partículas de poeira brilhavam sob a luz forte do dia, que entrava com força total pelo lugar onde estavam as vitrines. A Neverland Books fechara suas portas de maneira estrondosa.
Ao longe, pude sentir um burburinho. Toda a cidade devia, naquele momento estar indo para lá, encontrar dois corpos femininos no chão do estabelecimento.
Será este o meu fim?
Aos poucos, senti a visão perder o foco. Já não via mais as formas, apenas vultos, sombras imersos na atmosfera de destruição.
Então, diante meus olhos, surgiu um vulto, um fantasma de cor alva.
Será a morte? No momento me questionei se a morte não usa preto, mas deixei de lado. As cores já não tinham mais importância.
Tentei balbuciar algo, mas o som não saiu. Senti a sua mão humana sobre minhas pálpebras, e antes que eu pudesse reagir, fechou meus olhos.
A vida ainda estava em mim, então percebi: não estou morta. Mas minha presença já não estava mais ali.
A realidade mudou. Eu estava mergulhando nos sonhos e estava consciente disso. Com um impacto, sai de Cleverly Falls e viajei pelo espaço-tempo até parar em outro lugar, em outra ocasião, outro século.
Não me pergunte como, mas sabia com detalhes onde estava.
Las Vegas, estado de Nevada, no ano de 1986
O cassino aquela noite estava a todo vapor. O lugar parecia vivo.
As máquinas caça-níqueis, as de pinball e as roletas fervilhavam.
A excitação era geral. Eram jogadores perdendo e ganhando, esbajando nos jogos de sorte e azar o que muitos não poderiam: dinheiro, muito dinheiro. O que para tantos é apenas diversão, para aquelas pessoas era esporte.
As fichas multicoloridas rolavam soltas nas mesas. Os baralhos, com seus reis e rainhas entretiam parte da massa, o blackjack era a atração principal em rodas de apostadores.
_Ganhador, ganhador, galinha para o jantar!
Por algum motivo reconheci a expressão. Jamais pisara em Vegas, mas estranhamente me sentia em casa.
A alta sociedade estava toda naquela noite ali, reunida, com a ambição a flor da pele. Eram roupas de marca, joias e mais joias extravagantes e os egos inflados as características que descreviam aqueles que estavam ali. Queriam luxo, poder, apostar alto e dizer à todos: "Eu sou um campeão! "
Invisível àqueles olhos, passei despercebida por várias mesas com magnatas e milionários cercados por mulheres e champanhe, como se eu não estivessem notando minha presença ali. Talvez eu nem estava mesmo naquele cassino, e ainda esteja inconsciente no interior de uma livraria detonada, mas nada disso me importava. Havia algo bem mais interessante mais a frente.
A moda daquela época era tão marcante e gritante como os jogadores daquela noite. Homens e mulheres, sem exceção, pareciam terem saído de um daqueles programas repetitivos da época. Roupas largas com um mix de estampas que iam do listrado ao pele de animal, e tecidos bufantes da época, calças boca de sino, peças em couro, e os penteados dos mais variados, aqueles mais comportados aos blackpower e outros que não sei o nome.
Ao fundo, tocavam músicas de discos, aquelas que eu só ouvia em bailes da velha guarda e outras mais recentes de artistas como Michael Jackson. Naquele momento, tocava Thriller, e controlei o impulso de sair dançando.

Outra característica peculiar de Ártemis Flenty: tenho uma queda por dança, principalmente se for uma que eu goste e adore.

_Senhoras e senhores, por favor, um minuto da atenção de vocês.
Era evidente que ele não se dirigia à mim, mas parei para prestar atenção. A música também cessou e toda a atenção dos presentes se voltou naquele momento para o homem sobre o palco na parte central do ambiente.
Hotel e Cassino Gladius Plaza
O nome do lugar me veio à cabeça naquele momento tão peculiar. Todo o lugar me parecia familiar. Era um amplo, para não dizer gigante, salão, ricamente ornamentado, teto alto, sustentado por colunas de mármore. O carpete vermelho era felpudo, e este escondia todo o assoalho.
O palco era aproximadamente um ou um metro e meio mais alto que o restante do lugar, localizado em um canto mais afastado, cercado pelas mesas e máquinas dispostas ao seu redor. Vários homens de preto do tamanho de armários estavam reunidos ao redor do homem de cabelo ensebado por gel e terno estilo pinguim de festas, e à algum objeto enorme escondido sob um pano aos fundos do palanque.
_Por favor, senhoras e senhores, um minuto da atenção de vocês. Tenho um comunicado a fazer.
Os barulhos produzidos pela jogatina logo cessaram. Aquele homem havia acabado de conseguir o que mais queria: prender os olhos do público nele e no que ele dizia.
Eu me encontrava à algumas mesas de distância, parada em pé enquanto tentava entender a situação. Eu estava invisível em um cassino dos anos 80, assistindo à pessoas da época se divertir com jogos de azar e apostas. Este sonho estava sendo muito estranho, até mais que os anteriores, os dos sequestros. Me lembrar de Emma e de todas aquelas pessoas me arrepiou.
_Esta noite - a voz do homem pinguim interrompeu meu devaneio, sua voz áspera e o sistema de som deixava a desejar - em comemoração ao aniversário de dez anos do Gladius Plaza, oferecemos um prêmio especial ao sortudo da noite. Por favor, Ellen.
Aniversário?
O lugar, Gladius Plaza, naquela época, estava muito bem cuidado e preservado. Tinha as dimensões de um enorme ginásio esportivo, suas paredes eram brancas, colunas de mármore também branco, e um requinte na forma de uma decoração que mesclava o clássico e o moderno, de forma maestral.
A voz do apresentador logo se fez presente novamente.
_Por isso, tenho a honra de comunicar que, aquele jogador que mais arrecadar durante a noite no Gladius Plaza será contemplado com este magnífico prêmio...
Do fundo do palco, vieram luzes que iluminaram a grande massa coberta com o pano vermelho, de onde a assistente, Ellen, o puxou e revelou algo que jamais esperei ver...
A reação dos clientes foi imediata. O que vi também impressionou aquela gente toda.
Tratava-se de um enorme globo de vidro, do tamanho daqueles espelhados de discoteca, enorme, e o seu interior era recheado de dinheiro. E quando digo dinheiro,  é dinheiro mesmo. Cédulas e mais cédulas preenchendo a superfície lisa do vidro.
Os rostos dos presidentes estampavam quase todo o objeto que estava entupido, a ponto de explodir tamanha a quantidade de dinheiro vivo. Tantas notas juntas em um imenso pote, diante todo um salão com jogadores. Um atrativo a mais para os jogos. Um prêmio surpresa. Uma recompensa, sem sombra de dúvida. Uma jogada arriscada, de fato, até eu perceber que haviam coisas começando a dar errado.
O salão havia ficado meio escuro devido à apresentação do mega-prêmio, mas mesmo no breu, percebi alguém andando em meio as mesas e se posicionando diante do palco, poucos metros além.
Ela parou e naquele momento entrou em ação, assumindo o personagem.
_Eu tenho uma proposta a fazer.
E logo ela obteve a atenção que queria.
É hora do show.
Ela surpreendeu à todos, inclusive à mim. Havia interrompido o apresentador e virou o centro das atenções. As luzes do salão voltaram e então pude observá-la melhor.
A senhora usava um rico casaco de pele pardo, botas adornadas com classe e requinte, fora o chapéu de cowgirl  estiloso e os óculos espelhados. Parecia uma senhora de idade entre quarenta e cinquenta anos, mas a reconheci.  Mesmo tentando bancar a milionária do Texas, sua identidade não passou despercebida por mim.
_Meu marido é dono de uma empresa de mineração, e acaba de encontrar uma mina de diamantes no Texas. Eu compro tudo isso no globo com as pepitas que tenho na bolsa.
O sotaque forçado, as falsas madechas grisalhas sobre o rosto e até mesmo o jeito de segurar a pequena bolsa de grife. Não haviam dúvidas de quem se tratava.
_Podemos fazer negócio?
De longe, tentava entender.
A mulher que ali estava não era quem dizia ser.
Aquela ali sou eu! Mas como?

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