a cidade tinha uma energia incrível à noite, capturei as luzes neon gigantes pela rua iluminando rostos coloridos por toda parte com a câmera analógica que carrego comigo para onde quer que eu vá. veja só, o único relacionamento duradouro que tive na vida foi com tal objeto antiquado.
naturalmente, decidi atravessar estrada enquanto não haviam tantos carros, o semáforo de pedestres piscava ambas luzes vermelha e verde, provavelmente quebrado. na exata posição que estava, avistei um bar grande e aceso que tinha aparência impossível de não notar — o que estranhei, já que eu mesmo não tinha notado antes — em uma linha retilínea perfeita. pausa na caminhada para outra foto.
aproximei-me do extravagante edifício porém notei a placa de fechado. "que tipo de estabelecimento tão atraente fecha em uma noite como esta?", indaguei. logo me virei de volta à estrada para arranjar um táxi que me levasse de volta ao meu quarto recém alugado, e não minto ao dizer que o mesmo não demorou mais de cinco segundos para aparecer.
o meu dia seguinte foi completamente normal, tedioso o suficiente para querer me fazer sair à noite em tóquio de novo. peguei a câmera a fim de capturar mais da beleza noturna do lugar e a próxima coisa que percebi, após tirar as fotos, era que eu estava exatamente no mesmo lugar de antes: em uma linha retilínea perfeita para o bar misteriosamente fechado. atravessei a estrada novamente, notando que aquele mesmo semáforo ainda não fora consertado.
a placa de "fechado" permanecia, mas não satisfeito, resolvi olhar o que havia por dentro do lugar. foi quando vi a criatura mais bela do mundo sentada em cima de uma pequena mesa redonda metálica, encarando o ar como se alguém a fotografasse ali para algum tipo de revista de grife. peguei a câmera e capturei-a na posição perfeita. ela percebeu, desceu de onde sentava e veio até mim sem pressa alguma.
— trabalho aqui, posso ajudar? — ouvi a sua harmoniosa voz abafada por trás do vidro da porta fechada que nos separava.
— por que está fechado? — ela me olhou como se fosse uma pergunta idiota. odeio o sentimento de parecer idiota na frente de uma mulher como aquela.
— os bares no inferno só abrem às 10 — encarou o relógio de ponteiro na parede ao me responder.
pensei no que aquela resposta significava. então chequei meu relógio de pulso e descobri que ele parou em algum momento essa tarde.
— e quando serão 10 horas?
— a hora que você estiver disposto a pecar.
a mulher desapareceu por entre as várias mobílias dentro do bar e eu devo ter a esperado voltar por no mínimo 20 minutos, depois de esticar o pescoço o suficiente para ver as horas no relógio que existia ali dentro. tenter ver novamente e percebi que ele também estava parado. maravilha. voltei para o quarto em um táxi que chegou tão rapidamente quanto na noite passada.
ao amanhecer do dia, consertei meu relógio. pensava sobre aquele bar misterioso o tempo todo, constantemente, sem parar, enquanto o sol pairava no céu azul. esperei bater 21h30. fui até a rua e ele estava lá, com todo o seu esplendor. dessa vez, lotado de pessoas de todos os jeitos mais variados, estilos de cabelo e roupa, modo de agir e vozes. adentrei pela porta aberta e logo dei de cara com a mesma mulher da noite passada esbanjando um sorriso em minha direção.
— pelo visto decidiu chegar na hora certa, divirta-se! cuidado para não se deixar levar muito — deu uma piscadela.
ri do comentário brincalhão e segui para a experiência que me aguardava. naquela noite, dancei muito, tanto com mulheres quanto com homens e outras pessoas interessantes. todo mundo era absurdamente encantador, ficava zonzo de tão chamativa que era cada personalidade que me abordava, como se fosse impossível existir alguém entediante, ou apenas comum, como as pessoas que eu via no meu cotidiano. como eu.
em algum momento a noite chegou ao fim — fisicamente falando, porque parecia que dentro de mim ela ainda queimava & vivia — em algum momento um táxi me levou para o quarto alugado, em algum momento deitei na minha cama e dormi. acordei no outro dia e vi que os filmes da câmera analógica já tinham sido revelados, o tempo realmente era um mistério para mim naquele momento. as fotos eram quase peculiares. ao invés de rostos coloridos iluminados pelas gigantes luzes neon, capturei as luzes e os rostos borrados como se fossem uma fumaça densa e inerte. ao invés da mulher com aura elegante que encarava o ar uma mulher com tanto sentimento, um olhar vazio e solitário. era quase como se as fotos tivessem sido tiradas por conta própria e minhas visões completamente anuladas dali.
a noite cai e eu vou para o bar. não levo a câmera, seria muita irresponsabilidade da minha parte perder algo tão precioso. e foi assim por dias e dias (noites e noites), não sinto vergonha alguma de admitir meu vício, quanto mais eu aparecia lá, mais pessoas novas encontrava, nunca alguém parecido com outro, as vezes as mesmas pessoas, e o sentimento era nostálgico. quanto mais eu aparecia lá, mais próximo eu ficava da mulher divina que me recebia na entrada com tanto acolhimento. estava me tornando parte da casa. estava tornando mais casa do que o lugar para qual eu retornava ao triste fim de cada noite.
não, eu nunca sentia cansaço. nunca me senti, nenhuma vez. ao contrário do desgaste físico e mental do que era minha vida diurna. o bar recarregava minha energia tão intensamente que eu me sentia uma nova pessoa todas as noites. mas àquela noite foi a mais especial de todas: ao fim da festança, aquela mulher me abordou como se fosse frequente que ela fizesse aquilo duas vezes na mesma noite. olhou-me com afeto, quase orgulho. foi quando percebi que eu tinha me tornando um deles. uma nova pessoa. mas não como ela, nunca como ela. ela era inalcançável, indescritível e inimitável.
— te disse pra não se deixar levar muito — ela sorriu graciosamente — que tal dançar comigo por esta noite?
não tirei os olhos dos dela. não acreditava na realidade daquele momento e ao mesmo tempo ele parecia tão certo quanto a atração que ela me causava. ela olhou pelo relógio de ponteiro pendurado na parede por cima do meu ombro e voltou a me olhar.
— porém temo que a noite já esteja acabando...
— a noite não acaba — eu disse, finalmente — ela vive & queima dentro de mim mesmo sob a luz do sol. quero dançar com você. preciso dançar com você. é só no que penso o tempo inteiro.
— então por que nunca me disse?
— porque eu queria me tornar alguém que merecesse dançar com você, pelo menos um pouco — confessei.
— ah — ela balançou a cabeça — você sempre foi alguém incrível, eu soube disso desde a primeira vez. se me pedisse, dançaríamos juntos todas as noites.
— mas foi você que me pediu hoje — sorri — isso é mais incrível ainda.
— porque eu quero você. mas isso realmente não importa, porque eu sempre te quis.
olhei perplexo para ela. não teria resposta para aquilo. não teria como deixar aquela noite esvair-se como se não fosse nada.
— se dançar comigo hoje, a noite que existe dentro de você o tempo todo vai se externalizar e poderemos viver nela por toda a eternidade.
obviamente, foi o que fizemos. e no momento pareceu a coisa mais certa que fiz em toda a minha vida.
entretanto, em algum momento ela se foi e eu continuei dançando só, na presença de muitos outros, mas por dentro só. sem parar, como eu tinha desejado fazer. em algum momento avistei — na mesma porta que eu costumava entrar todas as noites, com um olhar excitado e ansioso e na qual sinto-me extremamente incapacitado de sair — outra pessoa, curiosa com aquela construção imensa na qual eu também já estive. aquela mulher foi receptiva com ela tal como foi comigo em minha primeira vez aqui.
encarar aquele rosto ingênuo desejando poder alerta-la sobre tudo que experienciei era agonizante. gradativamente, tornamo-nos as mesmas pessoas. então outro sujeito novo naturalmente surgiu e tudo se repetiu. pergunto-me como uma noite tão fantástica poderia transformar pessoas naquilo que éramos. eternos dançarinos de bares no inferno. eternos vazios ambulantes.
talvez sempre tivéssemos sido aquele vazio.
talvez o vazio era a eternidade.
talvez fôssemos eternos.