O céu estava parcialmente nublado, sobrecarregado pelas nuvens carregadas de águas que não tardariam a molhar o meu velho sobretudo marrom que eu usava todos os dias para me proteger do frio exigente que fazia naquela época do ano. Algumas pessoas passavam por mim distraídas com as milhares de preoucupações nas suas cabeças esbarrando em mim, atrapalhando o meu percurso. Olhava para alguma delas e me perguntava qual era o segredo mais obscuro que cada uma escondia, o ser humano era formado pelos seus pensamentos, estes que não eram vistos por mais ninguém, eram eles que testavam os limites da nossa sanidade mental. Era difícil ter um dia normal quando se avistava qualquer tipo de pessoa pelas ruas, o barulho irritante dos carros, o cheiro forte de café, a música do outro lado da esquina, até mesmo o latido do cão de rua se confundia. O cigarro brincava nos meus lábios levemente rachados por conta do frio que congelava os meus dedos, o cheiro forte de nicotina poluía o ar, algumas pessoas passavam por mim torcendo o nariz incomodadas com o cheiro e outras nem ligavam, tinham problemas maiores para se preocupar. Fumar poderia matar qualquer um, mas o momento era tão caótico que ninguém mais se importava. As compras nas minhas mãos começaram a pesar, e desejei chegar rapidamente em casa para que as pudesse soltar e descansar, era um pessímo dia para fazer compras, mas os armários estavam mais vazios do que os orfanatos da região.
O prédio era cinza, a tinta começava a descascar pelos longos anos sem uma pintura decente. Passei por um grupo de rapazes que fumavam conversando sobre os jogos clandestinos que aconteciam a uma quadra do prédio, eram tão perdidos quanto eu. Diferente de mim eles faziam isso para chamar a atenção dos pais ocupados ou negligentes. Subi os lances de escadas suando frio, mesmo morando a tanto tempo no apartamento era difícil me habituar com as escadas longas. O número da porta do apartamento tinha desaparecido com o tempo, desconfiava que tivesse sido roubado, sorri, em pensar na possibilidade de alguém circular pelas ruas vendendo um número de porta roubado. Lutei para abrir a porta emperrada, ela precisava de concerto, e a exacto três meses que a ignorava.
-demorou!- disse Phoebe recebendo as sacolas das minhas mãos apenas de langerie, era o seu passatempo circular pela casa com pouca roupa.- o chocolate?
-esqueceu que o meu carro está no concerto?- perguntei jogando o meu corpo sobre o sofá, senti o corpinho de Mistyc deitar na minha perna.- vê na sacola.
Mistyc era a mascote da casa, a gata siamêsa conquistava o coração de todos, com os seus pelôs macios e com o seu jeito naturalmente carente de ser.
O apartamento era pequeno, possuía uma sala com o velho sofá vermelho em que Phoebe passava a maior parte do tempo assistindo Tv. A cozinha era pequena tal como o banheiro no final do corredor. O quarto de Phoebe era ao lado do meu mas totalmente oposto ao meu quarto, o dela possuía vários discos de vinil, fotografias coladas em todos os cantos do quarto até mesmo na porta do ármario, e muitas delas eram fotografias nossas, do namorado e raras da família. O meu quarto era muito impessoal, com uma estante de livros que vão de Nietzsche até Sheakesper, algumas fotografias dos meus pais e de minha irmã.
-Shawn prometeu trazer o carro assim que sair do trabalho.- garantiu sentando do meu lado com uma maçã na mão.
Phoebe tinha os cabelos naturalmente ruivos, longos e sedosos que brilhavam quando espostos ao sol, as sardas se espalhavam por todo o corpo em contraste com a pele pálida que possuía. Nos conhecemos na cafeteria da esquina, eu estava perdida, tinha acabado de sair de casa, não tinha para onde ir e muito menos um trabalho. Phoebe apareceu como um anjo me convidando para dividir o apartamento sem ao menos me conhecer direito.
-otímo...- respondi pensativa.
-amanhã é dia de visitar os teus pais, não é?- perguntou mordendo a maçã sem tirar os olhos de mim.
-é sempre a mesma coisa todos os meses, visita-los e mostrar para eles que consigo sobreviver sem o dinheiro deles!- esfreguei as mãos no rosto, precisava afastar todas as lembranças do passado antes que tivesse uma crise.- odeio isso!
Phoebe envolveu-me nos seus braços e pude sentir algum conforto junto com o cheiro do seu perfume doce. Desde criança minha mãe adorava me levar para as festas que as suas amigas organizavam quase todos os finais de semana, todas diziam que eu era a criança mais simpática e tagarela que existia, até aquele trágico dia que mudou a minha vida para sempre. Meus pais nunca entenderam como tinha mudado tanto na adolescência, o que tinha acontecido comigo.
-você ainda tem a mim.- sussurrou e beijou os meus cabelos curtos até a nuca, eram semelhante a um corte masculico com pequenos cachos sedosos na cor de um preto azeviche.
-eu tenho você.- confirmei forçando um sorriso.
▪ ▪ ▪
O bar cujo o nome era Mercurium estava lotado, uma boa parte por homens que me davam asco. Eram em sua maioria rudes e perigosos, tanto quanto maliciosos. O bar tinha luzes neon por todos os lados, várias mesas dispostas a volta do palco onde ficava o pole dance, no longo balcão do bar ficava eu e Gleen a punk revoltada. Phoebe dançava fantasiada enquanto alguns deles jogavam notas de dinheiro e diziam palavras chulas que a forçavam a sorrir para não ter que mata-los na primeira oportunidade. Era o único local de trabalho onde poderiamos receber as nossas próprias gorjetas directamente dos clientes, o horário era flexível e o salário o suficiente para não morrermos de fome.
-...pretinha!- chamou o homem corpulento com uma longa barba castanha mal cuidada, me despertando dos pensamentos que me perseguiam constantemente. - a minha cerveja.
Revirei os olhos para o apelidinho descabido, e em alguns contextos racistas e servi o copo com cerveja para ele entregando-o de seguida. Seus olhos me miravam maliciosos, ignorando todo o esplendor de Phoebe no palco para me atormentar. Os uniformes que Mason nos obrigava a usar eram todos minusculos, um vestido preto que se ajustava no meu corpo magro de pernas longas. Os meus olhos eram redondos e nublados da cor de uma obsidiana com vastos cílios.
-quanto você cobra pretinha?- perguntou tocando a minha mão que outrora limpava o balcão.
-se insistir eu quebro essa garrafa na sua cabeça!- vociferei.
-ela tem garras, que nem uma pantera.
-são essas garras que vão arrancar o teu pênis pequeno.
Aproveitei o momento em que ele me fulminou com os olhos para atender os russos que queriam uma garrafa de vodka na mesa dos fundos, não era novidade ver negócios ilícitos serem feitos ali, Mason não se importava desde que não parasse de entrar dinheiro no bar. Até mesmo se envolvesse droga ele pedia uma comissão para ficar longe da polícia. Todos naquele bar desde mulheres a homens tinham um passado duvidoso e um presente perigoso.
Estava quase amahecendo quando Shawn apareceu com o meu carro concertado. Nós estavamos em pé na porta do bar fechado, as outras meninas tinham ido para as suas casas com pressa. Soltei um suspiro ao sentir a quentura que vinha do aquecedor do carro. Phoebe estava quase adormecida no banco de trás.
-estou com bolhas nos pés!- sussurou chorosa.- que odío daqueles homens.
-vou cuidar de você, minha ruivinha.- sorriu, com uma mão no volante e a outra acariciando a mão de Phoebe no banco de trás.
Shawn era um homem corpulento com os braços cobertos de tatuagens, um corte militar e roupas surradas. Passava uma má impressão a quem o visse, mas era totalmente rendindo a ruiva temperamental que dormia no banco de trás.
-Zuni!- Shawn chamou por mim, pelo apelido de infância.- a Phoebe me contou sobre a visita de amanhã... se você precisar de ajuda não hesite em ligar.
-obrigada Shawn!- forçei um sorriso olhando para a estrada.- preciso aprender a lidar com as lembranças daquela casa.
-você é forte, nós somos a tua família agora, estaremos com você em qualquer buraco.
Desde que saí de casa eles e Mistyc eram a única companhia que eu tinha, os únicos que tinham conhecimento de todas as minhas crises e principalmente do mal do passado.
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Z U N D U R I
Dragoste"Mantenha-se atrás da faixa amarela, não chegue muito perto, não acerque-se de meus traumas, não invada meus mistérios, não atrite-se com o meu passado, não tente entender nada: é proibido tocar no sagrado de cada um"._ Martha Medeiros. Eu ainda sou...