2| "Eu Queria Ser Uma Menina Normal"

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A casa da família Lark continuava a mesma, com excepção de um novo canteiro de órquideas brancas que ficava ao lado das rosas e das petúnias. A casa amarela com detalhes brancos possuía dois andares e um vasto jardim onde passei a maior parte de minha infância correndo como se não houvesse amanhã, alguns rabiscos meus e da minha irmã continuavam no alpendre como se o meu pai nunca os quisesse apagar, ele adorava registar momentos para depois recordar, esse era o bom da vida, viver e recordar. Toquei a campainha depois de fazer uma contagem mental de um à dez. Olhei para as minhas roupas o calção branco que combinava com a camisola de gola alta e com as botas de plataforma, e um casaco de lapelas longas na cor rosa, roupas que foram escolhidas a dedo por Phoebe, ela insistia em dizer " se queres parecer forte, use roupas que ti deixem forte". A porta foi aberta por minha mãe, Drusilla Lark, uma mulher de personalidade marcante que trabalhava em uma indústria sendo uma das poucas mulheres a fazer parte da equipe apenas para ajudar meu pai com as despesas da casa. Os seus olhos de cor âmbar escondidos nos óculos de grau brilhavam com lagrímas contidas ao me verem na porta da sua casa, o lugar que um dia fora um lar para mim.

-Zunduri.- sussurrou, envolvendo-me nos seus braços. Fora uma sensação estranha como se não a visse a anos, sentir o seu cheiro de flores novamente era como voltar para a infância dolorosa.

-senti a tua falta mãe.- respondi lutando com as lagrímas que teimavam em escorrer pelo meu rosto, não queria soar fraca, por mais que dentro de mim me sentisse assim, um fracasso.

-Xylia! Albion!- minha mãe gritou me puxando para dentro da casa e das lembranças que me causavam calafrios. Você é forte Zunduri! Pensei comigo mesma.

Minha irmã e meu pai apareceram de lugares distintos me envolvendo nos seus braços, era o calor de uma família de verdade. Apenas percebia que sentia falta quando estava perto deles.

-Zuni! Minha irmã, fico muito feliz que tenha vindo.- Xylia sorriu-me.- tenho tanta coisa para lhe contar!

-não se afaste novamente filha.- pediu meu pai com os olhos tristes. Era devastador vê-lo daquele jeito e perceber que apenas eu tinha o poder de mudar tudo.- nós somos a tua família...

-Albion ela não vai, não é Zuni?- mamãe perguntou em espectativa. Como dizer para ela que ficar naquela casa testava a minha sanidade mental, que o meu maior desejo era nunca mais voltar para lá.

-mãe...eu....- soltei um suspiro procurando palavras.- não posso voltar a morar aqui.

-ao menos volte para o meu aniversário, na proxíma semana.- Xylia pediu em espectativa.- ou será que se esqueceu?

-nunca!- afirmei segurando as suas mãos delicadas.- prometo que estarei aqui.- sorri.

Para afugentar o clima triste entre nós mamãe preparou um almoço especial para comemorar a minha presença na casa. Durante todo o almoço vi nos olhos de cada um tristeza e medo de que eu nunca mais voltasse. Eu também sentia vergonha da minha covardia, a quem contaria que o meu corpo estava sujo por culpa de um homem nojento que a sociedade não faria questão de crucificar, ele era inocente como todos os homens do mundo, e eu era culpada por ser mulher.

Estava sentada na varanda de trás aproveitando o silêncio para ler um pouco de filosofia, Além do bem e do mal, Friedrich Nietzsche. Escusava-me em ler na biblioteca da casa, e ser importunada por uma crise, eles não saberiam como lidar com a filha problemática, apenas Phoebe e Shawn tinham presenciado momentos das minhas crises, quando tudo voltava ao normal o clima ficava opaco dentro do apartamento eles tinham medo de tocar no assunto comigo. O cheiro de bolachas de nozes fez-me interromper a leitura que fazia com que os meus preceitos fossem todos questionados, e talvez tudo que acreditavamos não fosse real.

-...você sempre gostou de livros, tanto que o teu pai não vira outro jeito a não ser construir aquela biblioteca para você usando as economias que acumulava no cofre.- comentou sentando com a bandeja de bolachas de nozes e café sem açucár, um ritual que era apenas nosso.

-eu li e reli cada livro, me esforçei para orgulha-lo...- respondi vagamento, lembrando de todas as vezes que ficava fechada na biblioteca lendo e fazendo resumos para mostrar para ele.

-e você o orgulhou.- sorriu fraco, entregando uma chávena de café para mim.- está feliz?

A sua pergunta pegou-me de surpresa, felicidade era uma palavra com conceitos muito subjectivos, o que me faria feliz poderia fazer outra pessoa infeliz, será que valia apena? Eu não entendia a felicidade, felicidade talvez fosse sair para beber com Phoebe e Shawn em algum bar proxímo de casa, ou dar banho em Mistyc enquanto uma música de Led Zepplin tocava.

-quando estou perto de vocês...

-amo você, minha Zuni.- sorriu.

-a amo muito mais, minha mãe.- sorri de volta.

▪ ▪ ▪

Passava da meia-noite quando Phoebe me encontrou na varanda do apartamento fumando um maço de cigarro, sentada na cadeira de qualquer jeito, pensando em como tinha sido difícil deixar os meus pais com lagrímas noa olhos pedindo para que ficasse um pouco mais. Partia o meu coração não puder dizer-lhes a verdade, talvez eles fizessem justiça por mim. Mas tudo não passava de meras suposições, que tinham grande valor em romances policiais. O robe branco que ela usava escondia a sua nudez, mas as bochechas vermelhas e os gemidos altos denunciavam que ela e Shawn tinham terminado mais uma rodada de sexo.

Eu não era uma puritana, já tinha levado alguns "amigos" para o apartamento, sexo sem compromisso. Mas todos tinham o mesmo problema nenhum deles conseguia me fazer chegar a um orgasmo, e outros nem mesmo tinham capacidade de me deixar lubrificada, era terrível.

-não deveria estar dormindo Zuni?- puxou o meu maço de cigarro e o apagou.

-se você gemesse mais baixo, todo o prédio estaria dormindo.- ironizei.

Phoebe ficou corada por alguns segundos, mas de seguida desatou a gargalhar contorcendo-se. Sentou do meu lado olhando para a rua pouco movimentada.

- sinto que algo a incomoda, estou errada?- perguntou sem olhar para mim.

-estou com um mal pressentimento, tive um pesadelo.

-não se preocupa foi apenas um sonho ruim, logo passa.- beijou o alto da minha cabeça.- a psicologa ainda está disponível. Deveria marcar uma consulta.

-não vou contar o que me atormenta a uma desconhecida.- retruquei.

-ela vai saber como ajuda-la a superar todos os traumas, e se precisar eu vou com você.- explicou.

-não precisa!

Respondi indo para o quarto, era mais uma vez o medo falando por mim. Apesar de estar sem sono obriguei-me a continuar deitada na cama, continuar a conversa com Phoebe estava fora de cogitação. Não tinha coragem de admitir que estava certa em tudo o que falava.

Z U N D U R IOnde histórias criam vida. Descubra agora