Capítulo XXX

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Por muito tempo, por muito tempo ele havia ficado ali. Nascera sob a estrela maior, abençoado pelos deuses. Mas aqueles reis haviam sido impiedosos com os estrangeiros, haviam os escravizado. Os destruído. E agora por um plano de fuga frustrado ele e seus companheiros estavam presos. Estavam em um buraco negro, apertado, de baixo da terra, com a única entrada de ar sendo a tela de contenção metros acima. Algumas vezes os guardas vinham e os puxavam depois de implorarem para fazer suas necessidades. E, quando os guardas atendiam, na maior parte das vezes também eles os humilhavam novamente, os batiam, os xingavam, e até mesmo os estupravam. Três de seus amigos haviam morrido por febre e por serem picados por escorpiões, agora restavam apenas oito, contando ele.

E foi naquela quarta noite quando foram retirar os corpos podres da cela que eles jogaram uma mulher ali. Ela caíra como um pássaro, se estatelara no chão e não levantara a cabeça por muito tempo. Quando conseguira sair dali e se engrenhar em um espaço pequeno entre dois homens, ela chorará a madrugada inteira. Com o passar dos dias os homens, já sem um pingo de humanidade e loucos como animais, tentaram a estuprar. Mas algo em seu ser foi maior e não conseguiu permitir aquilo, ele defendeu a mulher e avisou que os mataria se tocassem em uma só um fio de cabelo dela. Foi assim que a convidou para se sentar perto dele, para sua segurança. A mulher nunca falava, seu rosto era magro assim como o resto de sua figura, parecia frágil demais, então por isso ele começou a lhe dar seu pedaço de pão velho também. A mulher nunca comia, mas em seus olhos opacos e cansados ele conseguia ver que ela o agradecia.

Com o passar dos dias, ela começou a conversar com ele. E ele com ela. Falaram sobre o passado, sobre os sonhos, sobre o estado do mundo, sobre o futuro e sobre eles mesmos. E assim cresceu naquele deserto um pequeno botão de amor entre os dois. E só de segurarem a mão um do outro e só de poderem recostar a cabeça no ombro um do outro, os dois estavam felizes. O mundo pareceu não ser tão ruim assim, mesmo no inferno em que estavam. Foi então em uma noite dessas que a mulher pediu para fazer suas necessidades. Os guardas a puxaram, ele esperou e contou o tempo para que voltasse, sabia quanto demorava o caminho da cela até o local que usavam como banheiro. E foi no segundo a mais naquele tempo que ele percebeu que algo estava errado, foi no grito de socorro, nos risos e escárnios maldosos que ele entendeu o que estava acontecendo.

Os guardas sabiam que aquela mulher estava associada a ele e ele a ela, e por ser o líder da revolta ele pagaria por isso. Não demorou para o tecido ser rasgado, o prelúdio de algo pior ainda por vir. E foi quando a mulher gritou, chamou por seu nome, chamou por seu socorro, implorou para que ele viesse ajudá-la, que algo se quebrou em seu peito. E ele gritou, gritou para os colegas de cela, gritou para os soldados, gritou para a areia, gritou para os céus. E quando o grito não foi o suficiente, quando suas unhas já estavam na carne viva por tentar escalar a parede, ele pediu. Pediu para que parassem, que o punissem ao invés dela. Que o torturassem, que o levassem e tirassem sua vida, mas que deixassem ela em paz, que a soltassem. E foi quando entre urros de prazer e gritos de dor, que todos os soldados presentes se satisfizeram, eles a soltaram. Jogaram-na de volta no buraco quente e escuro da cela. A mulher se estatelou no chão. E ele correu para pegá-la.

Não havia sobrado nada de sua roupa além de trapos, que os soldados fizeram questão de jogar em seguida. Então ele tirara a própria camisa do corpo para lhe cobrir. Embalou a mulher nos braços enquanto segurava o que restava de seu espirito. Não dormira naquela noite, tampouco a mulher, que chorou até o amanhecer. Não demorou muito para que a mulher começasse arder em febre e então ele a segurou, a cuidou, implorou por água, mas ninguém lhe respondeu. E quando o pão velho e bolorento foi arremessado para dentro, a mulher não conseguiu comer. E nem ele conseguiu força-la a comer. Já estava debilitada demais e não conseguia mais nem se mexer.

Montanhas de AzarathOnde histórias criam vida. Descubra agora