Enquanto a melodia da Taberna Ferro e Fumaça envolvia a noite, Leyla experimentava uma inquietude crescente em seu íntimo. Era como se as antigas baladas de seus ancestrais sussurrassem mistérios insondáveis, ocultos nas sombras do passado.
Melancólica, ela deitou-se no telhado, seu corpo pequeno e solitário contrastando com o vasto céu noturno, ao passo que seus olhos castanhos refletiam a escuridão. Seus cabelos desalinhados eram moldados pela brisa, espalhando-se ao seu redor e sobre as telhas do pequeno edifício.
Próximos a ela, gatos espreitavam sobre o telhado, suas formas ágeis e furtivas aguardando pacientemente por qualquer migalha de comida, entre os felinos um gato preto e peludo, destacando-se do grupo, exibia um comportamento mal-humorado e desafiador. - De onde você veio, bola de pelos? - ponderou, concluindo que provavelmente fora descartado; o bichano não parecia ter o trato das ruas.
Brincalhona Leyla tecia com feixes de luz douradas delicados desenhos com os dedos em direção à lua, o gato, com um único gesto, desfazia suas criações no chão, demonstrando sua relutância em participar do jogo. Determinada e risonha, a moça puxou o bichano emburrado para perto de si, retornando a sua atenção à Taberna.
A moça tinha uma percepção aguçada que captava não apenas os sons, mas também os odores e as vibrações ao seu redor. Ela conseguia visualizar mentalmente as pessoas no salão, cantando e ouvindo a música, seus rostos iluminados pelas tochas, enquanto as notas da canção se misturavam com os sussurros da noite. Cada fragrância, riso e lágrima eram nítidos para ela, como se estivesse imersa em um mundo de sensações intensas e vívidas.
Do telhado, ela ouvia a canção ancestral, transmitida de geração em geração, narrando a história sombria do seu mundo, da magia antiga e das castas que dividiam sua sociedade.
Nas eras antigas, num tempo distante,
Quando deuses e homens, feiticeiros, em Kiadgara a paz viviam,
Mas sombras surgiram, ameaça constante,
E juntos lutamos, pela luz que seguíamos.Com magia e poder, estávamos armados,
Sob os olhos divinos, nosso rumo trilhado,
Mas trevas se ergueram, num mal repentino,
E lado a lado, batalhamos, firmados.Nas batalhas, alianças se forjavam,
Entre divindades e feiticeiros, entrelaçadas,
Porém a traição dos homens aconteceu,
E com a Ruptura do Tempo, laços cortados.Ainda resta magia, porém em alguns manchada,
Pelos Banidos, da deslealdade herdeiros,
Uma marca sombria, por eles carregada,
Pela ruptura dos laços, nas cidades inteiras.No entanto, os Deuses prometeram o perdão,
Quando os descendentes, das mulheres,
Que fiaram escondidas na roca das tecelãs, os fios recuperarem na mão.
Então, a harmonia será restaurada, redenção alcançada,
E a magia, outrora perdida, renascerá, entre todos renovada.Que esta canção seja um alerta,
Para todos que desafiam a ordem com imprudência.
Pois mesmo os mais poderosos, sob os céus, condenados,
Não escapam do destino, por seus atos errados.Enquanto as letras da canção ecoavam em sua mente, Leyla sentiu um impulso inexplicável e tocou a pulseira de contenção de energia que envolvia seu pulso, uma relíquia mágica que a acompanhava há um ano, desde que completara dezoito anos. Com hesitação, acariciou os pulsos das mãos e uma onda de dor percorreu seu corpo, como se cada centímetro de sua pele fosse puxado para trás por uma força invisível.
Ela olhou com desgosto para a pulseira mágica, um presente obrigatório da cidade que todos os cidadãos eram forçados a usar. Doar sua magia era o mínimo que cada pessoa podia fazer. Naratumi, uma das últimas cidades do reino tão próximas do mal, sofria constantes ataques de fora e de dentro, sendo um lugar de corrupção e injustiças.
Repentinamente, como se as letras da canção se transformassem em imagens, sua mente foi inundada por visões vívidas e perturbadoras, cada lembrança dolorosa sendo arrancada de suas entranhas. Viu mulheres corajosas e determinadas, porém, em vez de admirá-las, sentiu uma dor lancinante em sua mão, como se estivesse sendo queimada pelas chamas do passado. A história de amor não contada e não cantada parecia uma ferida aberta em sua alma, e se perguntou quem eram aquelas pessoas, os fragmentos eram confusos e dolorosos como um lamento interminável.
Seu único desejo era libertar-se daquela pulseira e escapar para qualquer lugar, longe daquele reino onde a dor e a revolta a envolviam como sombras implacáveis. Leyla despertou de suas visões e seus olhos encontraram os do gato. Por um instante, sentiu como se estivesse mergulhada num abismo de conhecimento ancestral que emanava daquela pequena criatura.
- Estou imaginando coisas, já tenho tido visões estranhas, são essas malditas algemas. Não me olhe assim, seu pequeno astuto, vai buscar sua janta, seus amigos já foram.
O gato ronronou e seguiu em direção ao seu colo; o pequeno agora agia como qualquer felino dengoso. Leyla aceitou a missão sem ainda compreender que ambos faziam parte de algo maior, onde os segredos do passado e do presente se entrelaçariam em uma dança mística de destinos.
- De que raios de lugar você surgiu, Tapete de Pulgas? Sim, esse é um ótimo nome para você.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Herdeiras da Trama
Short StoryEm "Herdeiras da Trama," mergulhamos nas crônicas de mulheres entrelaçadas pelo poder proibido da magia do tempo. Em Kiadgara, um reino onde essa habilidade é vista como uma terrível maldição, cada herdeira enfrenta um destino ora de sombras e deses...