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Com uma mistura de cautela e alívio, Leyla adentrou na agitada Taverna Ferro e Fumaça, seus olhos vasculhando cada canto em busca de possíveis ameaças. O atendente, sempre taciturno, não pôde deixar de perceber, escondidas no casaco da jovem, as orelhas de um gato, apontadas para fora, o que o fez franzir a testa. No entanto, ele não hesitou em servir-lhe o conhaque rapidamente, enquanto ela observava o salão principal com uma postura séria e determinada.

— Gatuna, sei que são tempos difíceis, mas gatos não são permitidos aqui. — disse o atendente, lançando um olhar intrigado para o casaco de Leyla.

— Ele não causará problemas. Apenas preciso de um momento para descansar.

O atendente inclinou a cabeça, ainda desconfiado.— Certo, desde que ele não saia do casaco. E você também deve manter um olho nele.

— Pode deixar.

Com um olhar perspicaz e uma pitada de sarcasmo, a moça percorria o ambiente da Taverna Ferro e Fumaça, desviando-se habilmente das figuras sombrias que se amontoavam pelos corredores estreitos. As mesas de madeira desgastada e as paredes manchadas contavam a história de incontáveis intrigas, criando uma atmosfera que oscilava entre o mistério e a decadência.

Entre risadas e olhares furtivos, as pessoas de toda sorte se misturavam, cada uma com sua própria agenda, alimentando-se do caos e da corrupção que permeavam o Porto das Sombras. Para os habitantes do submundo, a Taverna era mais do que um simples ponto de encontro; era o epicentro de uma teia de traições e conspirações, onde os Renegados, autoproclamados aqueles sem magia naquela região, tramavam em segredo contra o sistema opressor, enquanto se embriagavam com a ilusão de liberdade.

Chegando à sua mesa particular nos fundos do bar, seu "escritório", a moça se acomodou em sua cadeira com um suspiro de alívio. Era ali, entre as sombras e os murmúrios dos frequentadores, que ela se sentia verdadeiramente em casa e que aguardaria o homem misterioso.  Com um gole da bebida, e o Tapete de Pulgas procurando sob a mesa um lugar para sentar, ela deixou seus pensamentos sobre seu desafio iminente, que a aguardava, se dissipar.

Seus olhos pousaram em Adilarif, dono do estabelecimento, seu porto estranhamente seguro, enquanto o homem distribuía doses de ânimo entre os clientes, ela observava-o com uma mistura de gratidão e cinismo, reconhecendo nele uma figura paterna que sempre esteve ao seu lado nas ruas perigosas de Porto das Sombras.

Quando a viu, Adi aproximou-se da mesa de Leyla com um prato de sopa de batatas e um sorriso largo estampado no rosto. - E aí, minha pequena aventureira? Pronta para causar mais um furacão na cidade? - perguntou ele, com seu jeito peculiar de ser. Ela devolveu o sorriso para o homem que a acolheu e orientou desde os tempos em que ela era apenas uma menina de rua perdida e sem rumo. - Sempre pronta para uma boa dose de suor e sangue, Adi.

Bastou alguns minutos, entre risadas e conversas animadas e o ronronado do gato que agora já circulava na taberna, para Leyla sentir-se fortalecida pelo espírito de camaradagem que permeava a Taverna Ferro e Fumaça. Ainda sim, ela permanecia alerta para qualquer sinal de perigo iminente.

— Shura! Tashi! — Leyla exclamou ao ver seus irmãos de alma entrando na taverna abraçados a alguns amigos.

Shura, com um brilho nos olhos, subiu em uma cadeira e pediu a atenção de todos.

— Pessoal, por favor, um momento da sua atenção! — pediu ele, e um silêncio expectante tomou conta do local.

Leyla observava a paixão fervorosa de Shura com preocupação. Ele estava se expondo demais ultimamente.

— Cidadãos de Naratumi, ouçam nossa voz! — proclamou ele, e o bar ficou ainda mais silencioso. Leyla levantou uma sobrancelha, curiosa para ouvir o que ele tinha a dizer.

Shura continuou, cheio de paixão e convicção.

— Não podemos mais tolerar o que todos enfrentamos nas semanas das luas de sangue! — exclamou Shura. — A cidade sofre constantes ataques das forças do mal, e os Sentinelas, que deveriam nos proteger, só espalham mais medo. Eles patrulham incessantemente, cobrando tributos e aumentando nossa opressão a mando do governador geral.

Ele fez uma pausa para respirar, então prosseguiu:

— A magia, que todos nós ajudamos a criar, deveria ser usada para o bem de todos! Em vez disso, os artefatos mágicos são controlados pelos magos e corporações. Devemos lutar para que esses artefatos estejam disponíveis para todos: para que nossos agricultores possam proteger suas colheitas, para que os comerciantes defendam seus bens, e para que nenhum pai tenha que ver seus filhos perecerem prematuramente devido à falta de proteção mágica!

Murmúrios de concordância começaram a surgir entre os presentes. Leyla notou olhares determinados e acenos de cabeça em aprovação.

— Precisamos nos unir e lutar contra essa opressão! — Shura concluiu, com um tom inflamado.

As palavras de Shura estavam claramente ressoando com aqueles que estavam cansados da injustiça e da opressão.

Ao finalizar seu discurso, Shura ergueu o punho no ar e levou-o ao coração, conclamando os presentes a se unirem na luta por um futuro mais justo e igualitário para todos. E no bar dos renegados, o grito de apoio foi unânime, ecoando pelas paredes como um chamado para a revolução que se aproximava.

Antes que pudesse refletir mais sobre o assunto, a chegada daquele  homem encapuzado e perseguidor interrompeu o clima de fervor revolucionário. Leyla estudou-o com olhos astutos, percebendo imediatamente a aura de mistério que o cercava. O homem misterioso aproximou-se com passos firmes - Então, você é a ilustre Leyla? - começou ele, - Muito se fala sobre você e suas habilidades notáveis.

-E quem é o senhor para estar interessado em minhas habilidades? - Perguntou a garota intrigada enquanto recebia no colo o gato que parecia incomodado com a presença do homem. - Chame-me de Intermediário, - disse ele, sua voz ecoando com certa autoridade pelo recinto - E trago comigo uma proposta.

O homem fez uma pausa longa, como se estivesse ponderando suas próximas palavras, e então prosseguiu, - Estou à procura de alguém com suas habilidades para uma tarefa singular. Um roubo que demandará coragem, astúcia e determinação.

Leyla arqueou uma sobrancelha, intrigada com a proposta. Embora possuísse experiência em parcerias desafiadoras, algo na maneira e nas palavras do tal Intermediário a fazia pressentir que esta seria uma empreitada distinta de todas as outras que já enfrentara.

- Continue. - incentivou ela novamente, sua mente ágil já calculando os riscos e as possíveis recompensas envolvidas na empreitada proposta pelo tal Intermediário. - Precisa de companhia Gatuna? - Disse Shura, o chefe dos revolucionários, enquanto acenava para Tashi trazer mais bebida à mesa.

— Por que não ? Se me permitem, eu mesmo faço as apresentações. - Falou Intermediário. - Sim, eu conheço bem quem são vocês e o papel de cada um nessa pequena "quadrilha", digo nessa confraria que vocês institulam como Irmãos Sombras - O homem sentou-se calmamente enquanto os jovens se posicionavam a sua frente. - Você é a Leyla, a sensitiva, ágil como um felino, com uma habilidade notável para se infiltrar e descobrir segredos. Já você, Shura, o estrategista e carismático, que possui relações em todas as esferas da cidade e sabe como mobilizar apoio. E Tashi, o pequeno cientista que transforma objetos roubados em armas mágicas clandestinas. Seus talentos são valiosos e necessários para a missão que temos pela frente. Sobre a missão prefiro falar em outro lugar, mas já adianto que o que busco não é diferente do que vocês querem, mas, não se limita apenas a essa região.

Leyla trocou olhares com Shura e Tashi, sabendo que eles compartilhavam a mesma determinação e o mesmo desejo de obterem qualquer vantagem e recursos na luta pela liberdade, afinal eles eram os irmãos Sombras. Ela sabia que, juntos, poderiam superar qualquer obstáculo que o destino colocasse em seu caminho. - Precisamos analisar a proposta e os nossos benefícios, temos alguns minutos para te ouvir.  - disse ela, com um sorriso determinado no rosto.

O Intermediário assentiu com a cabeça, como se a moça tivesse alguma alternativa e o grupo se encaminhou para outro ambiente da taberna, para discutirem os detalhes da possível missão. Assim, enquanto, na Taverna Ferro e Fumaça, o murmúrio das conversas e o tilintar dos copos preenchiam o ar, Leyla e seus amigos se preparavam para mais uma jornada rumo ao desconhecido.

Herdeiras da TramaOnde histórias criam vida. Descubra agora