Perdido que estou de mim, alugo um barco para fugir. Compro a passagem mais cara para o destino mais distante. No longínquo caminhar, espero encontrar um outro eu. Ao olhar o espelho, espero não me ver, mas reconhecer um rosto que talvez já tenha visto. Que me agrade e que, mesmo que não meu, me faça sentir em casa. Da que fujo.
Quando eu entrar num mosteiro, se tiver mosteiro no lugar pra onde tô indo, que eu faça um voto de silêncio e não precise falar e explicar pra ninguém quem sou. De onde vim. O que faço. Quem é por mim.
Se o mar em que adentro for muito longo, que eu não naufrague. Mas se isso acontecer, que eu não resista, se o que encontrar for eu. Que eu naufrague inconsciente de mim. Indigente de mim mesmo. Sepultado num azul sem fim sem cerimônia, cântico ou discurso. Sem lágrima ou alguém que sofra pelo meu fim.
Distante do que sou, espero que o mundo aprenda a rodar diferente. Assim talvez minha cabeça entre no lugar. E ao se encaixar meu cérebro crie outro de mim. E que seja o único de que me lembre.
Sepulto quem sou. Sepulto quem sou. Puto que sou, fujo de quem pra sempre me persegue. Saio de fininho pra não me acordar. Coloco uma máscara de meia, um chapéu preto e um par de óculos escuros. Manco pra que as câmeras da rua não denunciem pra mim que eu passei por ali. Ando bem rápido, cruzo uma rua e ando bem devagarinho. Pra confundir quem me persegue. Ele vem, constante como não consigo ser, sem perder minhas costas de vista. Quase ouso olhar pra trás por cima do ombro pra ver se estou ali. Mas não ouso, porque sinto a presença. Corro de mim, depois de um tempo. Como se corre de um cachorro qualquer de rua. Corro porque sei que o assassino tá vindo. Ele trás um revólver com silenciador e uma faquinha cega no bolso esquerdo. Me persegue. Quer me matar.
Jogo pistas falsas pra mim. Ando por encruzilhadas. Pulo fogueiras acesas. A brasa me queima. Lambe meus pés. Pelo menos a sola de um. Despisto-me. Disponho-me. Decomponho-me. Desrespeito-me. Dispo-me. Inocente, finjo não ver que faço isso comigo. Assassino de mim mesmo, tento enganar o detetive. Que sou eu.
Agora vou de avião, penso. Enquanto ainda estou no barco, preso numa salinha, amarrado a mim mesmo. Quando eu ancorar em alguma ilhazinha pobre e cheia de doentes, eu pego e fujo e compro outra passagem e vou-me embora de novo. Agora de avião. Se vir que no aeroplano uma cabeça conhecida me observa, é só pular sem paraquedas.
Ruim é se ao cair, as minhas próprias mãos me segurarem e me trazerem em segurança ao solo. Onde terei que encarar e conversar comigo mesmo. Raios! Não sei aonde ir. No carrossel balançante em que ando, sou um dos cavalos. E também estou grudado ao solo. Sonso. Zonzo. Fanho? Terei eu que tomar banho e me perfumar com um odor que não é o meu? Vestir unhas e roupas e uma pele que não me pertencem?
Fugir é ter um infarto fulminante e viver no Inferno. Digo, fugir de mim mesmo. Girei o atlas, derrubei o globo terrestre da minha mesa, levantei uma placa tectônica como se faz com um tapete sujo qualquer quando se quer colocar sujeira embaixo dele. É. Mesmo assim, vendado, com o dedo escolhendo um lugar aleatório no mapa, parei sabe onde? Em frente a mim mesmo. Aqui, agora. Rodei, rodei e parei em casa.
Fujo do abraço colante de mim. É pegajoso. Asqueroso. Cheira bem, tem boa aparência. É da mesma matéria de tudo o que amo. Mas... Tento fugir. Será racional andar a esmo com um elmo esfacelado? Tropeço nas palavras que aprendi a falar. Atropelo pássaros no ar. Afogo animaizinhos no chão. Derreto peixes dentro d'água. Tudo pra saber se há lógica em fugir pra mim mesmo.
Fugir "de" mim, percebi agora, não existe. É fugir sempre "pra" mim. Porque, queira eu ou não, o eu com o qual não me identifico, concordo ou reconheço, SOU eu. O queijo derretido não pode dizer que não é ele só porque só se aceita quando se está durinho numa geladeira. É.
Talvez eu deva andar, assim de mãos dadas, comigo.
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Palavras Perdidas (Achadas)
CasualeUma coletânea de textos, poemas, pensamentos e ideias aleatórias autorais ou algo do tipo. Palavras soltas, versos livres demais, períodos frouxos, frases sem pé ou decapitadas. Por aqui, deslize suavemente ou caia sem aviso num mundo de palavras q...