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Se me dissessem que esta noite estaria sentada no chão da sala de arquivos a jantar com o meu supervisor eu iria-me rir na cara da pessoa. A mesa estava inundada de folhas e para não ter que desorganizar todo o trabalho que tinha tido ao longo do dia, decidimos que o chão de alcatifa era a melhor opção.

"Posso saber o que achas tão engraçado?" Perguntou ele quando reparou na minha expressão que já se tornava complicada de esconder.

"Tu sentado no chão de pernas cruzadas enquanto comes comida chinesa deve ser das situações mais cómicas que já vi."

"Podia dizer o mesmo sobre ti." Respondeu ele, enquanto mastigava o quarto rolinho-primavera.

"Eu não sou uma pessoa tão composta ou séria como tu."

"Mas pareces alguém que programa cada ação que faz diariamente numa agenda e mete alarmes para qualquer situação." Não consegui evitar de soltar uma gargalhada.

"Acabaste de me descrever como uma maníaca."

"E estou errado?"

"Parcialmente errado. Eu gosto de ser organizada sim, mas não levo isso a um extremo." Ele olhou-me com uma cara pensativa e antes que pudesse falar, interpus "Tu não pareces muito diferente de mim nesse aspeto."

"Acho que qualquer médico deste ramo tem que ser no mínimo metódico e organizado em tudo o que faz."

"Não te aborreces de só viver para este trabalho?"

"Eu amo o que faço."

"Não foi isso que te perguntei."

"Cresci rodeado de médicos, não conheço muito para além disto." Disse ele gesticulando para dar ênfase ao que dissera.

"Não pensas em casar ou ter filhos?" Antes que pudesse pensar na pergunta, a mesma já tinha saído da minha boca. Ás vezes odiava-me por não me controlar mais.

"Eu entrei nesta vida com a noção de que não teria muito tempo para dedicar a uma família."

"Eu acho que só não tem tempo quem não quer e sinceramente não me parece que tenhas muita vontade."

"É muito mais complicado do que simplesmente ter ou não vontade." Gostava de ouvir sobre o que tanto o impedia, mas sabia perfeitamente que ele não iria elaborar mais que aquilo.

Naquela noite cheguei a casa com a conversa que tivemos a repetir-se vezes sem conta na minha mente. Sentia que o conhecia um pouco mais, mas ainda assim ele continuava um mistério para mim.

Devo dizer que o trabalho de organizar e arquivar documentos rapidamente se tornou na minha versão de paz e sossego. Era relaxante passar o dia inteiro longe do alvoroço das urgências, mas não podia negar que tinha saudades e graças a deus, dois dias mais tarde estava de volta ao meu trabalho.

"Paciente do sexo masculino com um ferimento de bala no ombro esquerdo." Dizia a paramédica que trazia uma maca com um homem com pouco menos de vinte anos numa agonia acentuada.

"A bala saiu do corpo?" Perguntou o doutor tomando o controlo da situação e guiando a maca para uma sala de emergência.

"Não há vestigíos ou indícios de que a bala tenha saído." Respondeu ela.

"Obrigada, nós tomamos conta a partir daqui." Disse ele naquele tão familiar tom autoritário.

Após a paramédica ter saído, ele indicou que o Joshua e a Emma preparassem uma sala de operações enquanto tentava acalmar o paciente

"Tomem bem atenção a cada procedimento a partir daqui e preparem-se que vos posso chamar a qualquer momento para intervir." Disse ele quando finalmente entrámos na sala.

O médico anestesista já se encontrava preparado para administrar a dose correta e em questão de segundos o paciente ficou inconsciente.

Com a ajuda de duas enfermeiras, o doutor vestiu a bata azul e meteu as luvas num abrir e fechar de olhos.

Estar do outro lado do vidro e estar exatamente no local onde se está a realizar uma operação eram duas realidades opostas. A pressão e o ar que rodeava o espaço eram palpáveis ao tato.

A precisão com que ele extraiu a bala com uma pinça era de cortar a respiração e eu era incapaz de desviar a atenção do que estava a ser feito perante os meus olhos. Cada vez mais tinha a certeza que tinha escolhido a melhor profissão.

Quando ele terminou todo o processo que durou cerca de vinte minutos, virou-se e disse "Rachel quero que lhe cosas o ombro, tal como vos ensinei."

Desilusão atingiu-me por não ter sido escolhida para participar da operação. Não é que eu esperasse qualquer tipo de tratamento especial depois dos últimos dias, mas ainda assim tinha alguma esperança que ele optasse por mim.

A Rachel fez um trabalho limpo e sem imperfeições, quase como se não fosse a sua primeira vez. Impressionante era dizer pouco.

Quando a operação finalmente chegou ao fim e o paciente se encontrava estável, fomos dispensados para uma pausa de meia hora, mas eu era incapaz de me desligar do ocorrido.

O facto de um rapaz um pouco mais novo que eu ter sido baleado a sangue frio era algo que me deixava arrepiada da cabeça aos pés. A facilidade com que qualquer pessoa podia ter acesso a armas neste país ultrapassava-me por completo.

Infelizmente nos estados unidos é mais fácil alguém estar na posse de uma arma do que uma mulher poder usufruir do direito ao aborto, o que para mim é um absurdo total.

Estava tão distraída com os meus pensamentos que nem reparei na Rachel a chamar por mim, enquanto nos encaminhavamos para a sala de pausa.

"Está tudo bem?" Perguntou ela.

"Gostava de perceber em que circunstâncias aquele rapaz levou um tiro."

"Não vale a pena te prenderes muito aos motivos por detrás. O apego aos pacientes é algo capaz de mexer com o psicológico de qualquer um." Eu sabia que ela tinha razão, mas ainda assim eu não ia deixar de ter uma conversa com ele quando tiver recuperado.

Decidi afastar-me do grupo que estava envolvido numa conversa, a qual mais uma vez eu não estava com muito interesse em fazer parte. Eu sabia que esta profissão requer mais pensamento lógico que emocional, mas não entendia como é que eu era a única afetada com o que acabara de acontecer.

Enquanto passava pelo corredor principal, cruzei-me com o doutor que estava com uma cara mais sisuda que o habitual e quando lhe perguntei o que se passava, ele limitou-se a olhar para mim e ignorou-me por completo.

Pensei que de alguma forma depois do tempo que passei na presença dele, o entendesse melhor ou que fosse mais fácil abordá-lo, mas não podia estar mais enganada.

Cirurgião CollinsOnde histórias criam vida. Descubra agora