Capítulo 1

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Uma chance. Era tudo o que tinha. Passou mais de um ano planejando aquela noite e, agora que ela enfim chegara, tinha que ignorar o tremor de medo que tomava seus membros inferiores e seguir. Não havia mais volta. E, caso houvesse, voltaria para o que? Para privações, dor e medo? Não. Melhor encarar o desconhecido.

Sua mochila trazia apenas o essencial. Algumas roupas, um tênis, barras de cereal e o pouco dinheiro que conseguiu desviar de casa ao longo de longos meses de preparação para a fuga. Sua carteira de identidade revelava que Sarah Melnik da Silva tinha completado 18 anos há sete dias. Era uma mulher livre. E ninguém podia decidir a vida de uma mulher livre além dela mesma. Se nada fizesse, porém, deixaria de ser a dona da própria existência em apenas três dias, quando se casaria. Por isso aquela era a sua única chance. E nada podia sair errado.

O plano era relativamente simples. Quando a casa onde vivia com os pais adormeceu, ela saiu pela janela. Às 21h25min o último ônibus partia da rodoviária de sua pequena cidade. Precisava chegar até o porto. Lá embarcaria para onde conseguisse. O destino não importava. O que precisava era deixar para trás o passado que tentava destruir suas chances de ter um futuro.

Enquanto embarcava no ônibus, sentindo-se vitoriosa por vencer a primeira etapa do longo percurso que teria, lembrava-se dos caminhos que a trouxeram até ali. Há muito tempo sabia qual destino seus pais queriam lhe dar. Sua mãe, Ana, uma descendente de ucranianos, ao primeiro olhar poderia retratar o modelo ideal da matriarca familiar. Em muitos sentidos, ela e Cristal, sua irmã de apenas oito anos, tinham sorte de tê-la como mãe. Em outros tantos, não. Amorosa com a família e caprichosa com a casa, é uma mulher digna de admiração. Muito reservada, guarda de todos quem é de verdade. Talvez guardasse até de si mesma. Ou nem se lembrasse mais quem é de verdade. Ao longo do tempo Ana foi suavizando tanto a própria personalidade e desistindo de fazer as próprias escolhas para seguir o que o marido, Cesar, queria que, em algum momento, deixou de existir.

Apesar de tudo, não conseguia definir Cesar como um homem ruim. Suas atitudes eram, sem dúvida, más. Ele, porém, aparentava acreditar que fazia o melhor pela família. E enquanto destruía a vida de quem lhe cercava, estava certo de que agia para protegê-los. Jamais fora um pai amoroso, ao contrário, ela não se lembrava de ter recebido qualquer afago dele. Parecia que isso, para ele, era algo proibido. Apesar de não ser um monstro, fora ele quem trouxe um para junto da família.

O sol começava a deixar o céu menos escuro. O dia iria nascer em breve. E tudo ocorrera dentro do planejado por Sarah. Ainda sob as sombras da noite, ela e sua mochila embarcaram sorrateiramente em um navio de carga que, ouviu trabalhadores comentando, zarparia ao raiar do dia. Não conseguiu descobrir o destino. Não importava. Apesar de preferir ir para o outro lado da Terra, não se importaria caso ele ancorasse em outro estado brasileiro. Apenas deixar o Sul do Brasil já lhe bastava. De transporte em transporte, conseguiria atravessar a fronteira. Qualquer uma delas. E garantir sua liberdade.

Quando, escondida entre containers, sentiu o navio se mover, sorriu como há muito não fazia. Desde que o demônio entrou em sua casa, e em sua vida.

- Adeus, Otávio. Eu não sou sua. Eu me pertenço. – Encolhida no lugar abafado e escuro experimentou a sensação de liberdade.

Não queria pensar nele. Mas ali estavam as lembranças. Otávio Vilela aproximou-se de sua família quando ela ainda era muito menina e a irmã uma criança pequena. De alguma forma, convenceu seu pai de que ele era o melhor que a família poderia oferecer à primogênita da casa e, quando ela ainda brincava de bonecas, decidiram lhe privar de ter um futuro.

O tempo foi passando e seus pais normalizando a ideia de entregar – ou seria vender o termo mais correto? – a filha para um homem com mais dinheiro que escrúpulos. Passou a ser deixada sozinha com ele. Seus finais de semana se tornaram dias de sofrimento nos quais tinha apenas que suportar as horas passarem para então, devolvida aos pais, ouvir a mãe lhe dizer que, depois de casada, tudo melhoraria. Mas ser apenas uma adolescente não lhe impedia de saber que tudo pioraria.

Fugindo do destino: eles escolheram outras vidasOnde histórias criam vida. Descubra agora