Remição

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Foi às onze e cinquenta e quatro da noite que se deu o início do fim

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Foi às onze e cinquenta e quatro da noite que se deu o início do fim.

Dentro daquela casinha espremida no meio das outras que ficavam em frente ao cemitério, a moradora rolava na cama, em agonia e insônia. Ao seu redor, amassados pelo seu corpo, os papéis com os relatos da semana estavam largados, esperando sua vez de misteriosamente serem levados pelo ar e então desaparecerem como sempre faziam. O mal-estar fazia o corpo da mulher se contorcer a cada respiração e já fazia algum tempo que as lágrimas de dor tinham parado de rolar. Por fim, parou, quase catatônica, olhando fixamente para a parede vazia por onde, segundos atrás, uma mulher ruiva tinha evaporado. A superfície do cimento agora ondulava vertiginosamente, criando imagens em que a moça ruiva caía no chão, se contorcendo enquanto seu corpo se esticava e se dobrava, metamorfoseando-se em algo monstruoso.

Cansada de ver a mesma cena, a mulher se virou na cama, olhando agora para outra parede, onde a luz do poste não iluminava e as sombras prevaleciam. Logo se provou uma péssima decisão olhar para lá, já que nesse canto se repetia, em loop, uma cena grotesca com olhos humanos sendo liquefeitos e sugados. Nauseada, decidiu se deitar de costas na cama, as telhas ocupando toda a sua visão. Um paraíso sem desvario. Nada aparecia quando olhava para cima. Nenhum espectro, nenhum trecho da memória de algum falecido, nenhuma morte ridiculamente grotesca... nada.

Eram apenas as telhas avermelhadas e as teias de aranha. Paz.

No entanto, não conseguia manter seu olhar assim. Sempre que teimava em ignorar as alucinações dos arredores por muito tempo, a dor de barriga piorava de um jeito insuportável que só acalmava quando voltava a ficar deitada de lado. E assim sua noite se repetia em ciclos.

Era um inferno. O seu inferno pessoal havia dias.

A sensação de estar se esquecendo de algo só piorava tudo. Ela sabia que, em meio às alucinações e à paranoia de estar sendo observada por algo, essa coisa esquecida era importante de alguma forma.

Ou talvez fosse só o alerta falso da ansiedade. Ou uma premonição oculta.

Por fim, desistindo de tentar dormir, levantou-se e foi para a sala. Sorriu ao ver a leiteira cheia de chá sobre a mesinha. Por algum motivo, Dona Onésia, a velhinha que morava na esquina, tinha aparecido um dia em sua porta. Ela nunca explicou como sabia do estado lamentável de sua jovem vizinha, mas cuidava dela o máximo que podia, trazendo chá e remédios para o mal-estar. Quando nada disso se mostrou eficaz, ela benzeu a casa para afastar as más energias e chamou um médico. Providenciou toda a ajuda que pôde dar, fez comida... Era um anjo aquela senhora.

Ainda assim, nada de seus esforços resolveria. A moça sabia.

Tinha algo a ver com o arrepio e por isso só se resolveria com trabalho.

Se ao menos tivesse lido direito todas aquelas cláusulas do contrato... Nem sabia se era possível ser "demitida" por algum descumprimento ou o que aconteceria consigo caso isso acontecesse. Seria essa a explicação das dores e da insanidade?

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