Uma das primeiras coisas que eu aprendi nesse trabalho é que material de papelaria pode salvar vidas.
Se eu não começo a anotar qualquer coisa na hora em que sinto o arrepio, a visão imediatamente fica mais intensa e é possível que eu perca a noção do que é ou não real. Isso me trouxe muitos problemas no passado, inclusive certos... Acidentes. Às vezes eu ainda me pergunto: valeu a pena ter assinado aquele contrato?
Será que valeu mesmo? Porque, assim que acordei, ainda grogue, do meu cochilo da tarde, meus primeiros pensamentos não foram "que bom que eu tenho o resto da tarde livre" e, sim, "nossa, já está de noite, eu dormi muito", daí "que estranho, tem um monte de lápides ao redor... da minha... cama..." e então "droga".
De fato, uma visão já tinha começado. Eu não estou conseguindo ver meu quarto inteiro no momento, então seria muito difícil achar meu caderno, mas, felizmente, eu tenho preparo. Embaixo do meu travesseiro sempre fica um caderninho de arame e uma caneta sem tampa.
Observando o ambiente, eu logo noto que, obviamente, estou num cemitério. O mais clichê dos cenários de assombração e, ironicamente, o mais raro sempre que eu recebo um relato. Um homem uniformizado está encolhido e escondido atrás de uma lápide enquanto olha para um canto vazio do cemitério. Seu porte corpulento está bem oculto pela sombra de uma laranjeira e ele tem uma expressão de espanto como se, bem, tivesse visto um fantasma. O céu do horizonte já tem um azul um pouco claro, então talvez fosse quatro ou cinco da manhã.
Suas memórias fluem até mim em uma velocidade curiosa, me fazendo voltar algumas horas no tempo.
Naquela noite quente e sufocante do Dia de Finados, o homem estava no seu tedioso e recente trabalho de guarda noturno do necrotério. Particularmente ele não entendia a necessidade de ter um guarda num local como esse. Sua companhia naquela noite, a legista do lugar, brincou que às vezes os mortos se levantavam e iam embora, o que dava muita dor de cabeça com relação à papelada. O guarda riu, achando graça, mas a legista permaneceu séria e calada, fazendo seu trabalho.
Observou as mãos da legista organizarem os cadáveres novos nas caixas de metal. Para uma cidade média como Serra Baixa, era curiosa a quantidade de corpos que chegavam. Mas ele não pensou muito nisso e saiu para seu posto. Precisava garantir que ninguém entrasse na área do cemitério durante a noite. Felizmente o máximo que teve que fazer naquela noite tinha sido parar um bêbado que, às onze da noite, pulara o muro para fazer xixi, então ele se permitiu relaxar mais quando o relógio marcou duas da manhã.
Afinal, quem em sã consciência iria para o cemitério de madrugada?
Com calor e as roupas ensopadas de suor, ele pegou seu cigarro e desceu para o térreo do prédio. Sentou-se na calçada que ficava de frente para as lápides e sentiu o ar mais fresco da madrugada, calmo. A lua cheia brilhava no céu como um farol, criando inúmeras sombras e dando um ar cinematográfico ao pequeno cemitério. A leve brisa movia as árvores e arbustos que enfeitavam o lugar, fazendo as flores brancas de jasmim caírem delicadamente sobre algumas lápides. Sem que o guarda notasse, uma das sombras das árvores se alongou. As longas garras sombrias se esticaram como rasgos em um lençol até tocarem a silhueta da sombra do homem. Um breve arrepio percorreu o guarda e ele pegou seu isqueiro.
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Crônicas de Serra Baixa
ParanormalSerra Baixa é uma cidade misteriosa no meio do nada onde tragédias e mortes sem explicação são naturais. Habitante dela, alguém amaldiçoado carrega o fardo de saber como essas ocorrências misteriosas acontecem e quais as terríveis fatalidades que as...