CAPÍTULO 9

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ONZE ANOS E QUATRO MESES ATRÁS

Mencionei a possibilidade de trancar o curso de medicina com meus pais, esperava que a reação deles fosse ruim, mas não imaginava que seria tanto. Entendo por que minha irmã saiu de casa assim que pode.

— Você não vai deixar medicina para cursar escrita, não enquanto eu estiver pagando seus estudos!  — Meu pai vocifera na mesa do jantar. — Qual seu objetivo com isso? Ser uma desempregada a nossas custas pelo resto de sua vida? — Fico calada com a cabeça baixa, esse é o começo de uma eterna noite.

— Como se já não bastasse todo desgosto e tristeza que você nos trás. — Minha mãe começa e sei o que irá falar nos próximos trinta segundos. — Por que não é como sua irmã? Tiveram a mesma criação, ao contrário de você ela é normal. — Com normal a senhora Clary quer dizer hétero.

— Se me dão licença eu vou para o meu quarto.

— Não, você vai ficar aqui. — O senhor Clary grita completamente alterado. Ninguém acreditaria se dissesse que ambos acabaram de voltar de um culto.  — Vai terminar esse curso, se tornar uma boa médica e nos dar ao menos uma felicidade na vida, vai ser pelo menos uma das coisas que planejamos para que você fosse.

— Se soubesse que se transfomaria nisso preferiria que Deus tivesse te tirado de mim ainda em meu ventre. — Senhora Clary fala as palavras que repete constantemente toda vez que se lembra de minha sexualidade, que diz em toda santa discussão. Sinto meus olhos encherem de lágrimas, por mais que ouça isso desde meus doze anos não faz com que doa menos.

— Nisso? — Pergunto tomada pelo ódio, raiva e rancor.

— Sim, em que momento deixou que o diabo se apossasse de sua mente Jade? Em que momento errei como mãe?

— Em todos desde que se tornou uma. — Grito batendo o copo de vidro na mesa. O vidro se estilhaça deixando um corte em minha mão, porém ninguém, nem mesmo eu parece se importar.

— Você precisa voltar para igreja, estamos orando por sua alma todos os dias, Deus a quer de volta.

— Deus me quer de volta? — Dou uma gargalhada com o jeito em que ela afirma. — Eu prefiro queimar no fogo do inferno eternamente do que me tornar como vocês, se é o que querem dizer. Hipócritas que pregam o amor de Deus e nem ao menos o seguem, que usam partes desconexas e descontextualizadas da bíblia para julgar quem quer que ande ao seu redor e que se acham superiores somente por estarem na igreja em todos os cultos. Então se o Deus de vocês consegue aceitar as imensas injúrias e perversões que fazem, acredito que também me aceite, até por que não cometo nenhum crime, faço algo que aliás vocês deveriam, amo. — Termino e consigo segurar as lágrimas para não caírem na frente deles.

— Como ousa derrespeitar seus pais de tal maneira? Quer saber, estamos cansados, exaustos com sua presença, você tem duas horas para sumir dessa casa, caso contrário eu próprio te tiro a força. — Senhor Clary afirma. — Quer viver sua vida de luxúria e descaso? Viva, porém bem longe da minha casa.

— Está bem. — Viro as costas e me permito chorar, o choro que guardo a quase oito meses. Arrumo minhas poucas coisas em uma mala e saio pela porta dos fundos, não quero nem sequer olhar em seus rostos. A noite está extremamente escura e chove, ando até o fim da rua e embarco em um ônibus que leva até o outro lado da Pensilvânia. Encosto minha cabeça na janela gelada e me permito desabar, deixar vir tudo que está guardado em mim, nesse ano, em anos passados, desde sempre. Quando assusto do sono em que entrei o automóvel já está chegando onde tenho que descer. O ponto chega e desembarco me molhando mais ainda na garoa que cai, ando poucos metros e paro em frente a casa com o número oitenta em sua fachada. Toco a campainha e ouço o portão destrancar.

— Eve? — Maxine fala surpresa.

— Oi, como vai? — Dou um sorriso sem graça encarando meus tênis.

— O que está aqui? A mãe e o pai também vem? — Pergunta olhando os arredores.

— Não.

— Graças a Deus. — Suspira. — Entre antes que pegue um resfriado. — Adentro a casa e uma mulher está deitada no sofá dormindo tranquilamente.

— Quem é ela?

— Muitas coisas mudaram desde a última vez que nos vimos Eve. — Max me dirige até um quarto de visitas, me dá roupas secas e aponta para o banheiro.

— É sua namorada? — Pergunto.

— Sim. — Fala se jogando na cama.

— Por que não me contou que era...

— Que eu era lésbica assim como você? Não achei que fosse necessário. Posso perguntar o que te trouxe até aqui?

— Me expulsaram de casa.

— Como?

— Não quero mais fazer medicina e algo me diz que sabem de meu novo relacionamento, então simplesmente me expulsaram.

— Já havia pensado nessa possibilidade, porém nunca pensei que de fato fariam isso.

— Posso ficar com você? Só temporariamente, assim que conseguir um emprego prometo que vou embora.

— Ir embora? Jade, você é minha irmãzinha, minha casa é sua casa. Pode ficar quanto tempo precisar. — Ela me abraça forte e beija meu ombro. — Está tudo bem, temos uma a outra, certo? — Repete enquanto volto a chorar em seu colo.

— Obrigada Max. — Soluço a frase para ela.

— Não precisa me agradecer, sei que se estivesse no meu lugar faria o mesmo por mim. — Maxine pega meu rosto com as duas mãos delicadamente e me faz encara-la. — Nada e nem ninguém vai te machucar aqui, prometo. — Os tempos voltaram a ser como na infância, onde Max sempre me protegia de qualquer coisa que fosse capaz de me ferir, onde me escondia por detrás de seu corpo e ela se colocava na minha frente em qualquer situação de perigo. Posso até não ter muita coisa, mas tenho minha irmã comigo.

Se não fosse você...Onde histórias criam vida. Descubra agora