NOITE MEMORÁVEL

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Quando chegou nosso grande dia, só trabalhei meio período, pois precisava passar por uma grande transformação. Mesmo nunca tendo feito isso antes, pintei o cabelo do Arthur de verde e enquanto esperava a tinta fixar, ele pintou o meu. Com os cabelos prontos, chegou a hora de se vestir e como meu maninho ficou lindo com aquele terno vermelho...

Também amei me ver vestida assim. Depois de prender o cabelo em um coque, só faltava a maquiagem, mas como essa não é uma das minhas habilidades, foi o Arthur quem pintou meu rosto do mesmo jeitinho que fez com o dele. Ficamos parecendo gêmeos, ainda mais quando colocamos lentes de contato verdes.

Terminada a nossa transformação, tratamos de sair depressa, pois tínhamos menos de duas horas até o início do programa. Quando pegamos o metrô, todo mundo olhou para nós com espanto, mas nem nos importamos. Cansamos de nos preocupar com a opinião dos outros.

Chegando a emissora, nos identificamos e fomos levados aos estúdios do programa do Murray, onde ficamos em um camarim até chegar nossa vez. Pouco antes do show começar, ele apareceu com dois produtores para falar conosco. Ele ficou surpreso ao nos ver daquele jeito e quis saber:

– Arthur e Elizabeth Fleck?

– Somos nós mesmos. – respondi me levantando da poltrona onde estava.

– Por que estão vestidos de palhaços? Vocês são de algum circo ou é um protesto político?

– Só estamos vestidos de acordo com o que você acha que somos.

– Não entendi.

– Você nos chamou de "coringas" na semana passada. – Arthur completou se colocando de pé ao meu lado.

– Sério? Não me lembrava disso.

Como ele podia ser tão cínico? Vir com uma desculpa tosca como essa depois de nos humilhar em rede nacional! Ignorando nossa indignação, ele apenas disse quando seria nossa deixa, mas antes que saísse, pedi:

– Quando for nos anunciar, pode nos chamar de "Os Gêmeos Coringa".

– Por quê? Vocês nem são gêmeos.

– Isso não interessa. É assim que queremos ser chamados e ponto final.

Parecendo ofendidos com minha acidez, os três se retiraram na hora. Eu nunca tinha sido tão firme com uma pessoa antes. Acho que minha decepção amorosa me tornou mais dura.

Faltando 2 minutos para a nossa entrada, fomos levados até os bastidores e ficamos esperando de mãos dadas atrás das cortinas. Quando fomos chamados, entramos girando graciosamente, como em uma dança.

Na hora de apertar a mão do Murray, fiz isso com tanta força, que os dedos dele estalaram, mas o mesmo aguentou calado. Assim que nos sentamos em nossos lugares, o apresentador perguntou ao meu maninho se ele era comediante e sorrindo, ele confirmou.

Arthur ficou empolgado quando Murray pediu para ele contar uma piada e tirando seu caderno do bolso, começou a procurar uma boa, mas isso já foi motivo para mais uma piadinha às suas custas. Procurei ignorar isso, dando a chance para meu maninho ter o seu momento.

Assim como acontecera no clube de comédia, ele caiu na risada assim que começou a piada e o Murray reclamou:

– Como é que você quer ser comediante, se só fica rindo o tempo todo?

Não aguentando essa provocação, tive que responder por ele:

– E quem é você para criticá-lo?

– Você é irmã ou advogada dele?

– Por quê? Por acaso também teve pais irresponsáveis, sendo obrigado a crescer antes do tempo para criar um irmão doente mental que é tratado como lixo por gente do seu tipo?

– Do meu tipo? E que tipo seria esse?

– Ignorantes que não aceitam quem é diferente deles.

O Arthur deu a maior gargalhada ao ouvir isso, mas o Murray não gostou muito da minha franqueza.

– Mocinha, se você e seu irmão não se comportarem, vou ter que chamar a segurança para tirá-los daqui.

– E você pensa que temos medo? Saiba que também somos cidadãos de Gotham e temos os mesmos direitos que você,

Para surpresa daquele arrogante, a plateia inteira aplaudiu e meu maninho também se pronunciou:

– Não é porque você é famoso que tem o direito de pisar nos outros.

– Desde quando eu pisei em você ou na sua irmã desbocada?

Dessa vez, meu irmão (sempre doce e tranquilo) perdeu a paciência e se levantou bem zangado.

– Não ouse falar assim da Lizzie! Já esqueceu que zombou da gente nesse programinha ridículo, passando o vídeo da minha apresentação no clube de comédia aqui no centro? Como minha irmã foi me ajudar no palco, também virou alvo das suas piadas sem graça! Não foi por causa dessa droga de vídeo que nos chamou aqui?

Dessa vez, o Murray ficou sem resposta, mas meu palhacinho favorito ainda provocou batendo no peito:

– O que houve, Murray? Não tem mais nenhuma piadinha às custas do Coringa aqui ou da irmã dele?

– Calma, Arthur, pode se sentar para continuarmos a entrevista?

Ainda mais zangado, meu querido irmão se debruçou sobre a mesa do apresentador e o encarou bem de pertinho.

– Sabemos muito bem por que nos convidou para o seu programa. Foi para nos transformar em piada! Outra vez!

– Arthur, eu...

– É CORINGA! Já esqueceu?

Fiquei preocupada com o que poderia acontecer, pois nunca tinha visto meu maninho tão descontrolado, nem mesmo quando ele ficava sem tomar os remédios. Quando ele agarrou o Murray pelo colarinho, corri para contê-lo, dizendo que não valia a pena sujar as mãos por tão pouco, mas ele ainda veio com essa pequena ironia:

– Quer ouvir outra piada, Murray?

Quase sem ar, o homem negou balançando a cabeça, mas meu irmão revoltado contou mesmo assim:

– Sabe qual é a pior parte de se ter um problema mental? É que as pessoas querem que você aja como se não tivesse.

Graças a minha interferência, ele largou o Murray, que ainda sem fôlego, quis saber:

– Qual é a graça dessa piada?

– A graça é que isso não é uma piada. Todos querem que eu seja normal, mas quer saber de uma coisa, meu amigo? Eu não sou normal e cansei de fingir o contrário! Cansei de aguentar tudo calado!

Para coroar essa declaração insana e ao mesmo tempo sábia, ele deu uma bela gargalhada e acabei fazendo o mesmo, pois naquele momento, me dei conta que não era tão normal como pensava. Sempre soube que havia uma fera adormecida dentro de mim, mas agora ela estava mais acordada do que nunca e eu gostei disso.

Antes que a segurança fosse chamada para nos jogar pra fora ou mandar para o manicômio, resolvemos nos retirar com o mesmo charme e elegância com que entramos, mas ainda demos um presentinho para o nosso antigo ídolo, espirrando água das flores artificiais que escondemos em nossos coletes. Foi hilário e a plateia também caiu na risada.

Quando chegamos a rua, muita gente nos abordou, parabenizando por nossa entrevista nada convencional. Parece que os Gêmeos Coringa tinham se tornado famosos simplesmente por dizerem as verdades que muitos queriam dizer, mas não tinham coragem.

Voltamos tarde para casa e estávamos tão exaustos, que só tivemos tempo de fechar a porta e cair no sofá. Dormimos ainda vestidos e maquiados.

POR TRÁS DE UM SORRISOOnde histórias criam vida. Descubra agora