Parte5

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Honre sua mãe

Annabelle

E seus dias se tornam escassos, sua vida miserável e seu ser amaldiçoado. Tudo isso porque VC os desonrou, seu pai... Oh! Sua mãe também?

Chego em casa correndo, agarrada ao pedaço de tábua acima da minha cabeça, chuva! O pátio do condomínio estaria vazio se não fosse pelos moleques que se arriscam a jogar mesmo com água e lama como relvado.
Subo as escadas do meu prédio e vou dando passos tremulos, minhas mãos abraçando meu corpo depois de se livrarem do pedaço de madeira
— o que faz aque fora? Pergunto ao rapaz sentado na porta de sua casa de cabeça baixa, o caderno em cima de sua mochila apoiada nos joelhos, ele ergue o rosto e me encara, ajeita seus óculos de garrafa e murmura chateado: — minha mãe ainda não chegou — olho para o céu quando um relâmpago o rasga — Deus, o que se passa, porque está tão mal humorado hoje? Pergunto para ninguém em especial — talvez ele esteja triste — o rapaz murmura — pessoas tristes não resmungam nem gritam, ficam amuadas e cabisbaixas, como VC!
— rebato — talvez sejam soluços seguidos de lamentos...— penso um pouco e decido considerar — anda Pepe... Vem me ajudar com o jantar e vamos ver esses deveres de casa, sua professora continua burra? Ele ajeita os óculos e se levanta, começo a andar para minha casa e persebo seus passos atrás de mim — ela está se esforçando. — Muito bom.

— Boa noite. — Ah, oi papá! — Boa noite.
— Eu e Pepe erguemos nossos rostos — ele vai jantar aque de novo? Dou um olhar nada amigável para meu pai quando Pepe se encolhe, ele ainda não está acostumado com a sinceridade em forma de grosseria de papá — esses tem a mesma base, então...— ele pensa um pouco e responde sorrindo — mantem-se as bases e somam-se os expoentes. Pisco para ele enquanto me levanto para ir dar uma olhada no jantar
— VC deveria cobrar por isso...— papá!
— A verdade filha, nada menos que a verdade.  Bufei, ele tira proveito de muitas das coisas que aprende nos anónimos só para exercer com maestria sua actividade malévola de atazanar e intimidar os outros.
— Não liga para ele, Pepe, é mau assim porque não pode comer doces. Digo aludindo seu carácter obscuro, que reconheço ter puxado algumas porcentagens, á sua condição de saúde que o impede de consumir sem fiscalização determinada quantidade de açúcar.
— E depois eu sou o mau, minha própria filha, gozando de minhas deficiências, onde esse mundo vai parar? Já nem existe mais o “honre teu pai e tua mãe”. Eu e Pepe não conseguimos evitar rir, ainda mais pelo tom dramático que ele usou. Apago o fogão e ao mesmo tempo que o telefone toca o som de mais um relâmpago cortando o céu se faz ouvir mas meu frio na espinha parece ser mais transcendental que a luz arrocheada que preencheu o espaço por meio segundo.
Saio da cozinha indo em direção a sala, bocejo, — então, devo servir agora? Pergunto, meus olhos passam por Pepe que parece meio invergonhado mas com fome e a favor, pousam em papá, este parece muito atento ao que a pessoa do outro lado da linha fala, memeia a cabeça como se está pudesse vê-lo, ri dele, mas seu rosto branco não me provocou nenhuma graça, pelo contrário. Papá deixou o telefone escorregar por entre seus dedos e caiu sentado no sofá, as mãos no rosto, fui correndo até ele me agaixando — o que foi, papá? Pergunto mais umas três vezes não obtendo respostas, levantei-me e segurei o telefone, reencaminhei a chamada e uma mulher atendou — Alô! Hospital Psiquiátrico Flor de Lis em que posso ajudá-lo? — Meu coração deu três pulos antes de se chocar com a caixa torácica, olhei para papá, tremendo
— Acabei de receber uma ligação desse número, gostaria que repetice por favor o que disse ao meu pai, senhorita. A linha ficou muda pelo que pareceram dias, a pessoa do outro lado da linha suspirou — Sente-se por favor, senhorita. — Estou sentada. Menti. — Tem alguém aí com VC? — Aceno mas percebo que serei obrigada a falar, minha voz sai embargada. Que não seja nada grave por favor, que não seja nada grave por favor, por favor... Outro trovão corta o céu, iluminando minha casa e me fazendo pular, uma lágrima caiu de meus olhos, ou talvez tenha sido a água que permeiou por esse teto podre — tem sim, meu amigo, Pepe. — Muito bem. Liguei para informar-lhes do passamento físico de nossa até pouco tempo paciente... Que respondia pelo nome de...— seis letras para o primeiro nome, seis batidas do coração para ela — Talita...— Seis letras para o segundo nome e uma torrente de lágrimas para ela — Santos...— Sete letras para o terceiro nome e meu mundo desaba. De novo. Mais uma vez e, eu sempre deixo, sempre deixarei terceiros destruírem tudo que construí, tudo que sou, tudo que é meu... Meus sonhos, minha vida, meu eu... por sua culpa mãe, sua... culpa? — Pereira.—E minha vida desaba, isso também é para VC mãe?  Talita Santos Pereira. Caio de joelhos no chão, — Nãaaoooo! Oiço o grito que sai da minha garganta. Que mico! Eu ia só chorar em silêncio sem incomodar ninguém ou fazer escândalos mas os gritos que me escapam são incontroláveis, me ergo do chão quando sinto meu peito queimando, minha garganta está fechada, não consigo respirar, preciso de ar e água... Me apoiando em não sei o que me ergo e começo a caminhar aos barrancos e tropeços, desço as escadas e chego ao pátio onde a água fria me recebe, como se desde que começou a cair esperasse por uma oportunidade de me molhar... Olho para o céu, grito para Ele: — VC é muito bom, obrigada por sempre ter uma resposta digna para todo maldito pecado que cometemos debaixo dos teus pés, por que não eu... porque não eu... Pergunto para alguém que já mais me respondeu com palavras, só com tapas e de vez em quando beijos e abraços.
— Filha...— Não me toque! Me esquivei dele, a água e o vento viraram meu cabelo contra mim, minha visão estava comprometida
— por favor entre. — O vi de um geito que nunca antes, — VC é o culpado, não Deus, não eu, não ela... É VC!  VC a enlouqueceu, a deixou lá. Sozinha. Definhando, enlouquecendo... Se tivesse me deixado ir vê-la, se fosse vê-la... Se não fosse o pior dos marido e um pai negligente... — Perdão... Tive medo, tive medo. VC era tão jovem e tão propensa a influências, não podia te perder, não a VC... VC também não — tentou me tocar novamente, me esquivei de novo, dando passos para trás, eu não o queria perto, preciso de abraços e aconchego mas não dele, ele a matou, com seus vícios, seu descaso, disamor... — Belle! — Olhei para trás, Aninha vinha até mim correndo, atrás dela estava Pepe. Não me segurei, e corri, corri como se minha vida dependesse disso, corri com tudo que gritava para fazer parar de doer e me choquei com eles que me pegaram e envolveram em um caloroso abraço, mesmo as águas geladas não me impediram de começar a sentir calor. Deus, eu não quero mais sair daqui.

Olhei para frente, para o caixão creme, com detalhes dourados, tão bonito e caro, quem dera proporcionasse algum conforto para ela, quem dera ela pudesse sentir o perfume da flor que pus escondida ao lado de sua bochecha, quem dera pudesse sentir meu toque quando acaricie sua face ou seus cabelos, meu cafuné não fez o efeito que o seu fazia em mim, ela não sorrio nem disse “ tudo bem, mas não faça mais isso” quando confecei e me desculpei pelas minhas falhas... Já não podia me ouvir, sua pele fria e dura não me causava os mesmos arrepios que a sua quente, seus olhos fechados me incomodavam bastante, como quando era criança e me esgueirava para seu quarto, ficava olhando para ela e papá dormindo, a demora deles para acordar me sufocava, incomodava bastante, eu queria conversar, queria atenção, queria comida, carinho... Eu queria seus olhos em mim. Mas nunca mais os terei assim, nunca... Uma lágrima ousada mostrou que ainda existia e confirmou seu poderio como remanescente ao escorrer por minha face, achei que tinham acabado.
— Mamãe... Desculpe por favor, desculpe por ser uma filha orrivel, por te abandonar... Por te deixar sozinha naquela prisão, e-eu... Eu prometo que nunca mais abandono ninguém, prometo que farei tudo que poder, o possível e se o impossível tiver uma probabilidade de dar certo, também. Prometo. Sussurro, Pepe acaricia meu braço, sorrio para ele e recostou minha cabeça no ombro de Aninha. Papá não veio, ele desapareceu depois de tudo que eu disse, dois dias, ele não é um bom pai, nunca foi mas eu também não fui muito boa filha, sempre o quis ajudar, minha emancipação foi com o intuito de contribuir nas despesas lá de casa mas joguei todo meu desaforo em cima dele, minhas críticas foram assassinas e cruéis. Ele nunca foi um bom pai, sempre foi pessimista quanto ao valor dos estudos, era machista e muitas vezes insensível, mas sei que fazia tudo que sabia para que eu tivesse uma vida confortável. Joguei em cima dele toda culpa, incluindo as minhas, não foi justo, nenhum pouco. Suspiro. Acrescente também esse à minha lista “óh Tal.”

— Anda, precisamos correr ou nos atrasamos, o seminário começa em menos de dez minutos. — Apressou Lorena. Eu e Cláudia imitamos seus passos apressados. Não estava muito animada, mas sei o quanto isso é importante para Lorena e Cláudia, não poderia deicha-las perder esta palestra
— Conheço um atalho. Venham. As puxei e começamos a praticamente correr — Não fazíamos ideia que sua casa ficava tão longe, — comentou Cláudia, mas não parecia arrependida de ter ido me buscar. Depois do interro da mamãe fiquei um tempo sem ir para a escola, quase um mês, esta semana é a primeira e já faltei ontem, elas vieram me buscar hoje, confesso que não esperava por isso mas sua ação me obrigou e deu coragem para ir. Mesmo a minha vida estando uma bagunça, meu pai tendo voltado aos velhos hábitos sem vezes pior do que antes eu sei que preciso terminar o colegial, disso eu tenho certeza, depois decido se vou pra universidade ou não mas agora esse é meu foco, terminar o colegial e não sei... Meus sonhos são só um monte de fragmentos, já não sei o que quero fazer da minha vida... Ultimamente eu não sei de nada, só sobrevivo... Deve ter sido assim que mamãe viveu em seus últimos dias.
Passamos correndo pelo estreito beco e paramos no fim dele respirando, apertei minha lancheira contra meu joelho, preciso me exercitar mais... — Finalmente, estrada! Vamos. — Dei um passo para frente mas parei imediatamente ao me lembrar de algo que vi lá atrás, no beco, — O que foi? — Perguntou Lorena se virando para me olhar, eu podia sentir uma leve irritação em seu tom de voz — Preciso fazer algo aí atrás, já volto. Saio sem esperar que digam algo.
Quando estou no meio do beco paro de correr, olho para trás e vejo minhas colegas me olhando, aceno e dou mais uns dez rápidos passos até parar. Ele não se move uma polegada, está com o queicho apoiado no joelho o olhar fixo na parede a sua frente. Tem os cabelos que não sei se são castanhos ou se estão sujos, pele ressecada, barba farta sua posição não me deixa ter uma noção clara do seu tipo físico mas sei que não é pequenino.
— Olá... Eu já te vi muitas vezes aqui, VC parece gostar muito dessas paredes, desse espaço... Fico a sua frente mas ele nada faz ou diz, sequer parece me ver. Me agaixo a sua frente ficando da sua altura e quase Caio para trás quando vejo seus olhos que parecem ler almas. São de um azul límpido e cristalino, olhos cativantes e imprecionantes, baixei meus olhos e vi seu nariz que é cumprido e levemente arrebitado, seus lábios rachados. Ele continua a olhar para frente, e não para mim, mesmo eu estando na sua frente, eu não pareço tão interessante  aos olhos de um mendigo com problemas mentais ao que parece
— Prazer me chamo, Annabelle Pereira Dos Santos. Pode me chamar de Belle, olha eu preciso ir, vou deixar isso aque — boto minha lancheira no chão — tem água e uma salada de frango com batatas... De sobremesa bolo de ananás. Poderia ser coisa da minha cabeça mas vi seus olhos oscilarem
— O que está fazendo Annabelle? — Gritou Lorena — minhas amigas me chamam, se cuida... Dei um passo para me afastar mas logo parei — Sei que ficar aí parece o certo a se fazer, senhor, mas VC está apenas vendo sua vida passar, ao invés de vive-la. Precisei falar e sai correndo para minhas colegas.

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