2. Kenma

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— Boa noite querido.
Minha mãe me cumprimenta assim que eu chego em casa, mas não a respondo, minha atenção está completamente voltada ao homem sentado ao seu lado na mesa de jantar.
Não é como se fosse um desconhecido, mas as causas da sua presença aqui hoje certamente são desconhecidas, e desconfortáveis.

— Boa noite, mãe. — Digo fechando a porta atrás de mim.

— Seu pai veio jantar conosco. — Ela diz como se não fosse óbvio.

— Eu percebi.

— Lave as mãos e junte-se a nós. — Ela sugere.

Não sei exatamente o que pensar, então resolvo fazer o que a mesma me pede. Mas assim que chego no corredor consigo observar duas malas grandes, mal colocadas no quarto da minha mãe, no ângulo perfeito para que eu as veja e as reconheça.
Suspiro fundo o suficiente para que os dois percebam o que vi, e me dirijo ao meu quarto. Coloca a minha mochila na cama e lavo minhas mãos antes de ir até a sala de jantar, não é como se fosse possível simplesmente não jantar.

— Filha. — O mais velho começa assim que me sento. — Eu e sua mãe conversamos...

—Kenma. — O corrijo. — Eu vi as malas. — Digo alternando entre minha mãe e ele. — Eu não sou uma criança, eu entendo bem o que está acontecendo.

Pauso enquanto sirvo meu prato com a lasanha, meu prato favorito. Fico pensando no quanto eles planejaram essa noite, é como um pedido de perdão ridículo. Meu prato favorito, me esperaram para começar a comer, meu vinho favorito e até mesmo meus chocolates favoritos. Mas os últimos estão em cima do balcão ainda, talvez sirvam como recompensa se eu me comportar direitinho, como uma boa criança.

— Você quis voltar. — Digo me dirigindo ao meu pai, ou o homem sentado a minha frente, ou meu agressor. — E você permitiu. — Digo olhando para minha mãe para que ela sinta toda a mágoa em minhas palavras.

— Foi o resultado de muita conversa, precisamos que entenda que não foi da noite para o dia. — Minha mãe tenta justificar o injustificável.

— Quero as chaves do apartamento que minha vó me deu. — Digo simples, demonstrando que não quero estender o assunto.

— Eu preciso que você entenda que é bem-vindo aqui. — Minha mãe diz.

— A reforma acabou semana passada, não preciso que você vistorie mais. — Digo à minha mãe, ignorando totalmente sua última fala.

— Você pode ficar aqui até se formar, assim você continua economizando seu salário do estágio. — Ela insiste.

— Eu guardo meu salário para comprar um carro, mas abro excessões para emergências, mãe. — Esclareço.

— Você tem seu quartinho e sua privacidade, não precisa ir embora.

— Entregue as chaves à ela, querida.

Sinto um arrepio ao ouvir essas palavras saírem da boca dele, é nojento e repugnante ouvir esse homem chegar aqui, depois de tudo que fez, e fingir que nada aconteceu.
Dizem que quem bate esquece, e quem apanha não, mas nesse caso o agressor simplesmente finge que nada aconteceu. É claro que ele lembra que á seis meses atrás ele agrediu o próprio filho.
A causa não foi desobediência, não foi chegar em casa depois do horário, não foi por ter saído escondido ou outras dessas causas comuns. Esse homem, sentado à minha frente, espancou o próprio filho por um ato de transfobia. Como se não bastasse sete meses se recusando a utilizar os pronomes corretos, em uma noite em que finalmente caiu em si de que não era uma fase, e que trata-lo com pronomes errados nao mudaria sua identidade de gênero, achou que espancar o mesmo fosse "resolver" algo.

O restante do jantar segue em um silêncio desconfortável e constrangedor, que só acaba quando me levanto e coloco meu prato na lava-louças antes de me dirigir ao meu quarto e trancar a porta. E só aí, sozinho em meu próprio quarto com a porta trancada, eu posso respirar aliviado e finalmente chorar, descarregar todas as emoções que eu senti em um só jantar.

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Acordo no dia seguinte com minha cabeça doendo. Tomo um banho e me arrumo para sair, minha primeira aula começa em meia hora.
Estou prestes a abrir a porta quando percebo ter pisado em algo, resmungo por ter machucado o pé e dou um passo para trás conferindo o objeto. Uma chave, a chave do meu apartamento, sem nenhum bilhete, sem nenhum recado. Dou de ombros e balanço a cabeça afastando os pensamentos, não é como se eu esperasse que dissessem algo.

Pego o objeto antes de sair do quarto, em seguida da casa silenciosa e só percebo que estava segurando a respiração quando entro no ônibus.
A nossa casa deveria ser o lugar seguro, mas no meu caso é o lugar que eu mais temo, desde aquela noite, á seis meses, eu me pego checando se tranquei bem a porta do quarto, estando alerta a qualquer barulho diferente e até mesmo ficando em posição de defesa quando ouço a porta destrancar.

Quando chego na universidade a minha cara de choro é indifarçavel, chorei o caminho até aqui todo. Chorei também quando descobri que minha aula foi adiada, e a próxima seria só daqui a uma hora. Chorei quando peguei meu celular e descobri que estava no período da TPM, e que logo logo viria a minha menstruação, chorei de cólica.

— Bom dia. — A moça do trailer diz assim que eu chego. Não é como se a gente precisasse usar palavras, então só sorrio enquanto entrego meu cartão, mas ela não pega. — Alguém me pediu para te entregar algo. — Diz.

Meu rosto provavelmente demonstra a minha confusão, pois ela da de ombros e me entrega uma barra de KitKat com um post-it, junto com uma caneta, minha caneta. Sinto vontade de chorar com o gesto, mas só sorrio e me afasto antes de correr o risco de desabar na frente de uma atendente que mal conhece o som da minha voz.

Me sento em uma das mesas próximas e leio o bilhete "Espero que seja sua caneta da sorte", rio  pensando em como o garoto ficaria frustrado
se soubesse que achei essa caneta no chão do meu quarto á uns dois dias atrás.

Abro o chocolate enquanto vou até o jardim da faculdade, decidindo me sentar no gramado do prédio de licenciatura. Certamente não é minha área, mas gostei do gramado quando vi ontem, o prédio de tecnologia não tem nada além de mesas modernas e carregadores solares.

Deito em minha mochila, decidindo ficar aqui até
o início das minhas aulas. O sol melhora a cólica e não é como se eu fosse um estranho deitado na grama, a maioria dos estudantes desse lugar fazem coisas piores.

Não é o que pretendia, mas acabo adormecendo ali, na gramado do prédio de licenciatura.

Post-it - kurokenOnde histórias criam vida. Descubra agora