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- Riley, SIMON;

A missão dos Las Almas estava durando muito mais do que o previsto.

Tanto que a equipe se apossou de uma pequena vila abandonada próximo ao penhasco. "É a violência de Las Almas, eles fogem", foi o que me disse Alejandro quando notamos os lares deixados para trás ainda intactos, com a sensação de que as famílias pudessem retornar a qualquer momento de um período de férias, ou até mesmo do mercado. Escolhi a vila pois fica na parte mais alta da cidade, com acesso limitado e muros altos que tornavam o lugar seguro para uma estadia "paramilitar", nos termos que Hassan usou para nos categorizar. O pátio era largo, e os corredores entre as casas eram quase labirintos.

O calor, no entanto, é uma desvantagem. Nas altas temperaturas as cores vivas dos muros rústicos parecem fervilhar, as flores brancas despontam em meio a grama alta e atraem insetos, como joaninhas e borboletas... Porém, a mancha de sangue seco no muro lá fora não me deixa esquecer que isto é uma zona de guerra. Um lugar bonito, infestado da pior escória. Uma incongruência.

Devaneio através da larga janela, observando as montanhas ao longe e brincando com minha faca de fuzileiro, a Ka-Bar.

Meus ouvidos captam uma presença se aproximando antes mesmo que ela se manifeste. A porta se abre, com pouquíssima educação.

— Ghost — é Soap, soube pela cadência dos passos ecoando no piso de madeira velha.

— MacTavish... — pronuncio, desviando os olhos do pátio da vila para a porta do quarto escancarada. Soap está parado na soleira, com o cotovelo apoiado no arco da porta frágil — Veio me fazer uma visita? —

— Vim avisar que já temos água — ele acena com a cabeça — Água limpa, por sinal —

— Não sabia dos seus dotes para lidar com encanamentos.

— A família da casa da frente tem um poço, Alejandro conseguiu convencê-las a nos dar um pouco — ele sorri satisfeito.

É imediato.

Uma sirene vermelha estridente começa a soar em minha cabeça, entro em estado de alerta com aquele detalhe.

— Que tipo de idéia é essa?! — indago incrédulo, levantando do batente da janela, vou em direção a Soap — Estamos de tocaia nesse lugar pra vocês entregarem nossa posição a um vizinho qualquer?! A essa hora deve ter um esquadrão do Hassan com a mira nas nossas cabeças MacTavish! —

Ele recua gradativamente enquanto avanço, estala a língua descontente.

— Cê queria que a gente morresse sem água? — ele pergunta com ironia mas engole a seco. Irrito-me, tenho a sensação terrível de que tudo foi pelo ralo.

— Qualquer coisa seria melhor do que pedir à um morador, que tem grandes chances de ser cúmplice do Cartel! — grito a plenos pulmões girando nos calcanhares e andando pelo quarto. Os coturnos ecoam, sei que provavelmente todos na casa ouvem. Essa é a intenção.

— É só uma senhorinha e uma garota! Calma, cara! — tenta se explicar, não faço a mínima questão de olhá-lo diretamente — Alejandro as conhece, sabia que era seguro — paro.

— Nada, absolutamente nada é seguro neste lugar MacTavish. E não aja como se não tivesse consciência disso — aponto o dedo em sua direção, MacTavish estala a língua e vira a cara desacreditado. Engata os polegares nas alças do colete, totalmente descontraído, o que me deixa ainda mais perturbado — Vocês puseram a missão em risco —

— Ghost, relaxa aí. Eu averiguei tudo antes, Alejandro conhece a mulher. Ela já lhe deu apoio outras vezes, é uma velha senhora e a neta. A menina teve a bondade de se oferecer para trazer os baldes cheios dágua e...

— É claro que teve, porque não convidamos a velha e a neta pra um chá da tarde e contamos nossas táticas? — ironizo, coisa que não aprecio fazer de forma alguma. Caminho até a janela, encostando as portinholas envelhecidas o suficiente para fitar a casa vizinha por uma fresta. Nunca mais deixo essas janelas abertas. Meu maldito sol da manhã se foi.

Desço os olhos para o portão da vila entreaberto e a movimentação dos outros lá embaixo.

Então, quase como se estivesse sendo atraída por nossa conversa, uma garota escorrega no vão entre o portão entreaberto e o muro, surgindo dentro do pátio. Franzi o cenho notando que ela propositalmente evita fazer o barulho de ferro rangendo das dobradiças.

— Alejandro está lá embaixo com a menina enchendo um tonel com água limpa para banho. Como eu sei que você não vai deixar isso barato, faça o que bem entender com essa desconfiança — diz, e ouço suas botas se afastarem pelo corredor lentas e pesadas. Isso significa que ele apoia que eu investigue as duas, sem consultar Alejandro.

Mas não elaboro isso, me concentro na figura que se destaca no sol laranja do entardecer.

A menina acena para Rodolfo e Rodriguez, sentados em caixotes do lado de fora, abre um largo sorriso e caminha pelo pátio com uma liberdade que me põe a pulga atrás da orelha. Tem o cabelo longo e escuro, preso num rabo de cavalo frouxo, usa um vestido tão branco que chega a cintilar e sandálias vermelhas de fivela, visivelmente gastas. Um cordão de fio preto trás um pingente pendurado em seu pescoço.

Não tem mais do que vinte anos, penso. Uma menina.

Alejandro surge do canto do pátio do qual não tenho visão total, entrega um balde de ferro vazio na direção da garota e a cumprimenta com gentileza. A menina torna a sorrir segurando o balde pela alça. Eles conversam sobre algo e meu rosto se contorce de desgosto involuntariamente, estalo a língua. Confio em Alejandro, mas não confio em absolutamente mais ninguém desta cidade além dele. Pisco, reflito sobre a situação, mas não há muito o que fazer.

A idéia de ter cúmplices transitando por aqui bota a perder todo o trabalho de inteligência e localização, e a sorte que tivemos em achar apoio de equipes locais. Se Hassan sair do México, então tudo volta a estaca zero.

Alejandro e a garota terminam sua conversinha trivial. Ela se despede, e balança nos tornozelos finos prestes a ir em direção ao portão. Sigo seus movimentos com os olhos atentos, mas antes de que eu possa prever, ela se vira de supetão para dar ao Coronel um último aceno, e no percurso, acaba por acidentalmente me encontrar.

Desvia o olhar distraído mas em uma fração de segundo seu reflexo a faz voltar para janela, como se quisesse confirmar o que viu.

Não tenho reação alguma, sequer pisco diante daquilo, mas minha mão se fecha firme em volta da cortina encardida.

A garota abre os olhos grandes assustada e os percorre pela minha figura com as pupilas furtivas e inquietas, quase paralisa onde está. Permaneço imóvel, deixo que ela saiba que está sendo observada, quero que ela saiba que está sendo observada.

Mas antes do que imaginei, seu espanto se dissolve nas feições, se derrete para dar lugar a outra expressão. Seu semblante é lentamente contaminado por um lábio arqueado e um sutil levantar de sobrancelhas. Me encara direta e cristalina.

Pestanejo, enquanto aquilo que me gera novas hipóteses e uma sensação de desgosto ainda maior. A idéia principal é de que ela estava ali para me localizar, e não conseguiu disfarçar a própria satisfação quando fez isso.

Me encara por mais alguns longos segundos mas agora ergue a mão acima da testa, se defendendo o sol que ia contra seu rosto, estreita seus olhos em minha direção. Pisca algumas vezes, olha ao redor discretamente e não demora para dar meia volta. Cruza o portão enferrujado da vila, da mesma maneira exageradamente alegre com que entrou, e leva consigo aquela tensão crescente.

Quem é ela?

Hirviente.  |  simon ghost riley.Onde histórias criam vida. Descubra agora