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Passaram três semanas desde que Kauã partiu para o interior do interior. Meus dias, apesar de monótonos, adquiriram uma aura peculiar. As coisas parecem se encaixar, como se tudo ao meu redor fluísse harmoniosamente. As aulas já não me provocam sono, as pessoas parecem mais amigáveis – embora eu mantenha uma distância segura delas. Tudo parece caminhar bem. No entanto, como é comum, tudo que é bom dura pouco. Bem pouco!
O dia acordou seco, frio e distante de mim. Em um único dia, tudo mudou. Minha mãe me acordou, mexendo suavemente no meu pé. Ao abrir os olhos, deparei-me com seus olhos inundando tudo.
Chora ao lado do meu pai, que permanecia impassível. Nunca o vi chorar; ele estava mais frio. O olhar da minha mãe revelava evidente que algo não estava certo. Então, com suavidade, ela me disse: "O Hospice ligou. Eles disseram que o vovô precisa de nós agora. Preciso que se arrume, Hugo." Deixou-me ali, imerso em uma confusão mental avassaladora. Meu pai se aproximou, acariciando meus cabelos; essa é sua maneira de assegurar que as coisas dariam certo no final.
Passei alguns segundos antes de levantar. Vesti-me às pressas e desci as escadas. Eles já não estavam mais lá. Encontrei apenas meu pai junto à porta. Não nos olhamos, não tínhamos tempo para isso. Peguei minha bolsa e dirigi-me ao carro.
Minha cabeça parou de rodar quando senti o carro frear em frente ao Hospice.
E foi aí que soube o que estava acontecendo. Meu avô não fala. Digo, não há problemas com sua voz, mas ele simplesmente não emite palavras. Às vezes um som ou outro, mas nada além.O câncer alojou-se no sistema central dele. Minha mãe passa dias ao seu lado, acreditando que é crucial ele ouvir a voz da filha. Mesmo com os médicos afirmando que não compreenda o que falamos, ela insiste que seria benéfico para ele ouvir também a voz do neto.
No entanto, detesto hospitais, especialmente o Hospice. Nos hospitais, as pessoas têm a chance de voltar, de sonhar com a vida novamente. No Hospice, não! Lá, não há esperança, apenas a certeza... a certeza de que a morte é iminente. Não estou tentando rotulá-lo como um lugar ruim, não é isso. É apenas um local que encara a morte como inevitabilidade.
E eu, simplesmente não consigo lidar com esse sentimento, apenas não consigo.
Entramos no Hospice e o cheiro estéril do lugar me atingiu como um soco. As paredes brancas, os corredores silenciosos. A enfermeira está parada à porta do quarto, segurando diversas folhas em mãos. Meu pai assume a papelada enquanto as duas entram no quarto. Ele senta ao meu lado e puxa uma caneta do pequeno bolso na blusa social.
— Não vai entrar? — diz, olhando para as folhas. Folheando e examinando atentamente.
Hugo: Não. — cruzo os braços. — Acho que... — deixo a frase inacabada. Não seria a melhor hora para falar.
— Acha que não está pronto para ver alguém que conhece nesse estado? — completa, me deixando um pouco surpreso. Sempre que paro de falar, ele também para e tudo fica desconfortável— Vai precisar entrar lá uma hora ou outra. E você sabe que ela — minha mãe — vai precisar da sua atenção. Sou frio demais para isso. —Me olha e volta para as folhas.
Hugo: Eu não quero vê-lo. Não assim. Não quero vê-lo com tubos e fios. — ele guarda a caneta e cruza os braços.
— Certo. — Diz, fitando a parede. — Ninguém vai pressioná-lo a nada, Hugo. — meu pai não era de muitas palavras.
Hugo: Desculpa, pai...mas não consigo... é que, é muito estranho— minhas palavras se perdem no céu da boca.
— Entendo! É estranho até mesmo para nós, adultos. Seria injusto forçá-lo a entrar. Mas, sabe, eu, você e sua mãe viemos em silêncio. Sabíamos o que estava acontecendo, mas preferimos ficar calados diante ocasião, e sabe o porquê? — faço que não com a cabeça. — Porque ninguém gosta de falar sobre a morte. Mas ela acontece, de uma forma ou de outra. Sei que dói. Mas essa é uma parte que todos nós vamos enfrentar.
Tentei conter as lágrimas, me esforçando para parecer firme.
No entanto, um grito entrelaçado de dor e choro ecoou do quarto. Era o grito da minha mãe escapando angustiante. Minhas bochechas estavam encharcadas e meu pai me agarrou em seus braços. Em meio às lágrimas, percebi o quão idiotas eram minhas ideias sobre ele. Talvez minha ignorância tenha nos afastado. Talvez a ignorância dele tenha nos afastado. E tudo isso é uma tolice, mas não sei como recuperar o estrago do silêncio.
Não proferiu palavras, apenas me abraçou, transformando sua "frieza" no lugar mais quente do mundo. Enxuguei as lágrimas, levantei-me e adentrei o quarto. Minha mãe estava agarrada à mão de meu avô, um homem que, de longe, não pode ser descrito como o melhor pai do mundo. Ele fora injusto com minha avó e permaneceu ausente no final de sua vida. No entanto, lá estava minha mãe, sua filha, a mesma que ele discriminara e afastara. A filha que enfrentara suas palavras maldosas e distanciamento. E por um momento, senti-me em seu lugar. No lugar da minha mãe. Pois eu também estaria da mesma forma se fosse meu pai.
No final das contas, percebi que o que verdadeiramente une nossa família não é apenas a saudade ou o desejo de estarmos juntos, embora esses sentimentos também desempenhem um papel fundamental. Mas, na maioria das vezes, é a dor que nos reúne. Que nos faz sentir verdadeiramente família. E isso é o aspecto triste de se ter! Lamento por isso! Lamento por todos nós.
Dirigi-me ao jardim, onde algumas mensagens reconfortantes de Kauã relatavam que tudo estava bem e que sua avó, aos poucos, retomava o apetite. Contudo, escolhi não compartilhar com ele a gravidade da situação do meu lado. Não desejo que perca o tempo valioso que está passando com sua família.
Os meus problemas, afinal, são meus e somente meus. Não seria justo com ele.
Às 18 horas, despedimo-nos. Não acredito que meu avô tenha sofrido. Não houve sequer um sinal. Minha mãe abraçou meu pai, e ele a envolveu entre os braços, como um escudo protetor.
E no final, olhando essa cena, imaginei meu pai como um super-homem. Queria chorar, mas as lágrimas teimavam em não se manifestar. Às vezes, meus sentimentos são uma confusão inexplicável. No trajeto de volta para casa, o mundo pareceu compreender nossa dor, a dor de minha mãe, pois tudo mergulhou em um silêncio completo. O único som perceptível era o sussurro do vento.
Seu olhar estava distante, e observá-la assim era estranho. Minha mãe é uma pessoa forte, mas ninguém é 100% isso ou aquilo.
Nesse dia, tive a oportunidade de conhecer melhor meu pai, sentir seu calor, perceber como me protegia à sua maneira, enquanto minha mãe deixava o seu partir.
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Kauã & Hugo ( Romance Gay )
RomanceEnquanto voltava para casa depois de seu primeiro dia de aula, Hugo é acidentalmente acertado por um outro rapaz na saída do estacionamento de um shopping. Unidos pelo acaso, Kauã & Hugo, vão começar a descobrir que o amor pode sim, nascer de uma am...