Vida pacata

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Toda essa cena se repetiu em minha mente como lapsos de memórias que eram sim distantes mas que nunca foram esquecidas por completo. Quando estávamos no carro, vindo pra cá, eu tentei disfarçar ao pedir que ele esqueça tudo aquilo que aconteceu, mas a verdade é que nem eu pude. Eu só tentei enterrar esse sentimento dentro de mim na esperança de um dia ficar mais fácil de tolerar, mas a verdade é que não houve sequer um dia depois daquele nosso momento íntimo e único em que eu não pensasse em nós dois, e no que poderíamos ter sido a partir daquele mês.

Nossas bocas quase se tocando, suas mãos segurando o meu rosto, tudo exatamente igual e talvez até mais intenso do que eu me lembrava. Dessa vez nos conhecemos ainda melhor do que antes e já completamos 5 anos de estrada juntos. Um vínculo baseado em respeito, trabalho e amizade. Talvez até mais do que isso.

Naquele momento tudo parecia tão urgente mas ao mesmo tempo tão calmo, e por isso não se parecia nada conosco. Mas talvez isso fosse bom. Ou eu gostaria mesmo de viver mais 5 anos daquele teatro que fiz, sendo rasa com a pessoa mais importante da minha vida, a que melhor me conhece?

Existem tantas e tantas pessoas que já salvamos que perderam quem amavam. Pessoas que não tiveram tempo, oportunidade e muito menos chance de continuar com quem queriam. Lutamos todos os dias pela redenção dessas pessoas que sofreram na mão de criaturas e seres horrendos e grotestos que tentam constantemente tomar esse mundo de nós. Pessoas que perderam entes queridos, amigos e amores. Pessoas essas que nunca mais terão a chance de abraçar e beijar quem amam, porque esse direito lhes foi negado. O quão injusto é isso? E o quão injusto seria ignorar o que sinto por mais 5 ou 10 anos, até que um dia eu olhe pra trás e veja que talvez poderia ter sido diferente, que eu poderia ter aproveitado mais ao lado de Thiago?

E por uma fração de segundo, eu penso que poderíamos dar certo. Penso que poderíamos nos dar a chance de viver e construir algo juntos, e aproveitar o que nos resta nesse mundo da melhor maneira. Com esse pensamento em mente, eu o beijo pela segunda vez na vida, e parece ser ainda melhor do que na primeira vez. É um beijo doce, afetuoso e cheio de esperanças. E de novo se acende dentro de mim a chama que eu passei anos tentando apagar. Thiago dessa vez também me puxa pra si, querendo colar nossos corpos.

E mais uma vez um lapso de memória vem à minha mente, dessa vez não tão agradável e doce como a primeira. Dessa vez, me lembro da conversa que tivemos algumas horas depois do nosso momento mais íntimo. E eu juro por Deus que me lembro até hoje das nossas falas, como um extenso e doloroso roteiro em que memorizei com excelência pois o repassei em minha mente um milhão de vezes.

Naquela noite Thiago me fez uma proposta. Uma que eu não esperava. Pra dizer a verdade, essa possibilidade nem sequer havia passado pela minha cabeça, até porque eu não tinha motivos pra isso e nem objetivos que não envolvessem a Ordem e a morte de minha mãe.

Ele sugeriu que abandonássemos a Ordo Realitas juntos, na tentativa de viver uma vida normal. Isso significaria, a princípio, abandonar a busca pela verdade sobre a morte de seu pai, Arnaldo Fritz, e a morte de minha mãe, Lucille Webber. Significaria ignorar os eventos paranormais que acontecem no nosso mundo, de forma egoísta, afim de vivermos juntos plenamente. Ele queria continuar sua carreira como um repórter comum enquanto eu voltaria para a minha vida como uma simples cientista forense, e juntos viveríamos como meros civis, ignorando toda a realidade do paranormal a nossa volta.

Seu amor por mim estava ainda mais claro após essa proposta. E minha paixão e afeto por ele eram também claros a esse ponto, mas seria isso o suficiente pra sustentarmos uma vida juntos? Seria correto abrir mão do bem estar de milhares de pessoas, ignorando a existência de um perigo iminente, para que vivêssemos uma vida normal? Eu, que não costumava ser uma pessoa totalmente altruísta, tentei colocar na balança se isso seria o suficiente para abandonar não só essas pessoas, como um de meus maiores objetivos que seria descobrir o que realmente aconteceu com a minha mãe.

O grande problema é que essa questão não é simples e existe um peso moral nela. É claro que eu sou egoísta, sempre fui. Eu entrei na Ordo Realitas por objetivos e benefícios próprios, e acabei sendo sugada para um mundo em que nunca imaginei, e achava até então impossível sair disso. Mas eu estaria fazendo a coisa certa se saísse? A Ordem não possuía muitos agentes além de nós dois, e éramos uns dos mais valiosos e que mais se deslocavam e se sacrificavam para o bem estar geral.

A grande questão não é nem se valeria a pena e sim se essa vida simples e normal que tanto almejei seria o suficiente para me fazer feliz. E se não fosse o que espero? E se eu já não fosse capaz de viver uma vida pacata de um mero civil que trabalha, constituí uma família e se aposenta? Isso seria o suficiente para alimentar a minha alma? Eu seria capaz de viver assim? Eu conseguiria abrir mão de tudo que eu conhecia?

Naquele momento concluí que não. E de fato eu não estava pronta pra abandonar essa vida, e talvez nunca estarei. E por conta disso não fazia sentido dar esperanças à Thiago, mais uma vez, de que poderíamos dar certo juntos. Já era claro que apesar do que sentíamos um pelo outro, queríamos coisas diferentes. E talvez nossa relação não sobreviveria à isso.

Me afasto dele com o coração partido. Seus olhos procuram os meus e não os encontram pois viro o rosto com vergonha e pesar. Foi exatamente por isso que me fechei por tantos anos. Não acho que ele mereça uma pessoa como eu, com uma vida como a minha. Se ele quer sair dessa vida, deveria, sei mais do que ninguém que Thiago merece uma caminhada plena e feliz. Acredito que não sou capaz de proporcionar isso à ele.

- Liz...? - Thiago me chama, mas eu não o olho.

- Me desculpa, Thiago. Eu não posso te dar o que você quer. Já falamos sobre isso há dois anos atrás. - eu digo fitando o chão e com lágrimas nos olhos.

- Você merece ser feliz, Liz. Porque acha que está fadada a viver essa vida de merda que nós temos? Isso nem é vida! - ele diz.

- Precisamos dormir. Amanhã cedo estaremos de pé pra missão. - eu digo com firmeza secando as lágrimas.

Finalmente olho pra Thiago e seus olhos estão tristes e confusos. Ele franze o cenho e me olha, e eu lamento tanto por estar fazendo isso com ele. Ele é de fato um homem bom. Eu é que não sou boa o suficiente pra ele.

- Boa noite, Thiago. - eu digo, me levantando rapidamente e voltando para o meu quarto.

Me sento no chão com a cabeça encostada na cama, e novamente penso por alguns minutos em todas as coisas que poderíamos ter sido e não fomos.

Tudo que poderíamos ser [LIZAGO]Onde histórias criam vida. Descubra agora