Viagem ao interior

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Assisto ao nascer do sol da janela do carro, no banco de carona de meu companheiro de trabalho. Por apenas alguns segundos me permito perder-me em meus pensamentos, sonhos e devaneios. Penso em como a minha vida passou por diante de meus olhos algumas vezes em meu trabalho. Não o original, como cientista forense, e sim o meu trabalho na Ordem, ajudando pessoas que sequer sabem da existência das criaturas que convivem conosco nesse mundo. Sem nem mesmo olhar para o lado, já tenho ciência de que Thiago, mesmo dirigindo, me analisa com seus olhos observadores de um digno e experiente repórter. Me viro afim de observá-lo, e quando ele se dá conta rapidamente volta a olhar para frente.

- Olhos na estrada, meu querido. - eu digo enquanto Fritz abre um sorriso irônico, mas encantador.

Aquele homem dirige tranquilo, com as mãos firmes no volante, retirando-as apenas para dar pequenas batidas ao ritmo da música do Michael Jackson que toca no rádio. Observo sua barba falhada, seus cabelos castanhos e seu cigarro entre os lábios; Thiago é de fato um homem muito bonito. Com um senso de humor duvidoso, é claro, mas de qualquer forma já me acostumei.

- No que está pensando, Liz? - ele pergunta, curioso e paciente, como sempre foi comigo.

- Apenas no quanto esse trabalho e essa vida que levamos pode ser ingrata às vezes. - eu desabafo, e ele me olha de canto de olho, concordando com a cabeça.

- Às vezes? Nós literalmente abrimos mão das nossas vidas para salvar outras. Não sabemos mais o que é viver desde... - ele fala, e quando percebe já é muito tarde pra parar.

- Desde? - eu o olho arqueando uma sobrancelha, um pouco surpresa, mas já sabendo o que se passava pela sua cabeça.

- Desde as nossas férias do ano retrasado. - Thiago termina, agora um pouco ansioso, mexendo a perna depressa.

- Pensei que havíamos combinado de esquecer aquele mês. - eu digo, tentando ser direta, mas não tão ríspida como costumo ser.

- Você sabe muito bem que é impossível fazer isso, Liz. - ele diz, sério, e me encara.

Me sinto um pouco desconsertada, pois fui de fato pega desprevenida pelo seu último comentário. Não esperava que Thiago fosse ser tão sincero, e até mesmo sentimental. Por um segundo, me pego gostando desse seu novo traço. Talvez nem tão novo, apenas escondido.

Mesmo assim, tento manter a expressão séria e finjo mal ter escutado o que ele disse. Sinto seu olhar desapontado sobre mim e ele parece me queimar por completo.

Limpo a garganta como se tivesse com um pigarro, tentando finalmente mudar de assunto e acabar com o clima estranho que paira conosco dentro daquele carro. Olho para a estrada e vejo apenas verde ao nosso redor, plantações e árvores em todo lugar. Estamos indo para uma cidade no interior, um lugar minúsculo que nunca ouvi falar. Olho o relógio, já cansada após passar algumas horas sentada, apesar da companhia não ser ruim. Agora um pouco menos sorridente e orgulhoso, talvez.

- Sim, ainda são seis e trinta. E sim, Liz, antes que você me pergunte: ainda falta muito para chegarmos. Pode dormir se quiser. - meu colega de trabalho diz, tentando aparentar normalidade, mas já alterado e um pouco impaciente devido ao último assunto.

Normalmente, após um desentendimento ou discussão, damos espaço um ao outro por um tempo, mas dessa vez não tínhamos essa opção. Me sinto um pouco decepcionada com seu temperamento atual, mesmo sabendo que é completamente justificável já que eu nunca deixo ele dizer completamente o que sente ou algo do tipo. Sei que é desconfortável pra ele, mas acredito que seria ainda mais se deixássemos se expandir seja lá o que sentimos um pelo outro. Trabalhamos juntos, pelo amor de Deus! E o nosso trabalho não é nada comum. Quais as chances disso dar certo um dia?

- Não estou com sono. - eu teimo, já com visíveis olheiras sob meus olhos.

- É claro que está. Dorme, Liz, estou falando sério. Depois nós revezamos. - ele diz, dessa vez sem me olhar.

- Tudo bem. Qualquer coisa me acorde. - eu digo enquanto coloco a mão em seu pulso, e tento olhar nos seus olhos.

Não sei o que deu em mim naquele momento, mas não consegui evitar o impulso de o observar, e muito menos de o tocar. Ele me olha de volta e assente com a cabeça. Já não diz mais nada. Confesso que no momento esperava que ele fizesse um pouco mais, mas no fundo sabia que ele não faria a não ser que eu desse abertura pra isso. Viro para o outro lado com meu jaleco por cima, fecho os olhos e até cochilar penso em todas as coisas que poderíamos ter sido e não fomos.

- Bom descanso, Liz - eu ouço sua voz rouca e baixa falar comigo, pouco antes de apagar completamente e me render finalmente ao sono.

Tudo que poderíamos ser [LIZAGO]Onde histórias criam vida. Descubra agora