Olhos famintos

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Miriam ligou o videocassete, o aparelho, a TV e as fitas VHS vinham sendo sua única companhia nos últimos meses, a mãe dormia cedo. Os filmes pertenciam ao irmão antes de ir morar em São Paulo deixando a mãe deles sozinha. No fim o fato do irmão ter saindo daquela pequena cidade era a desculpa que Miriam precisava dar aos vizinhos e a si mesmo porquê voltou. Voltou para cuidar da mãe na ausência do irmão: dizia isso a si mesma.

Miriam abriu a caixa de papelão e observou as fitas. Impacto profundo, A espera de um milagre, O homem bicentenário, O exterminador do futuro, Predador, Independence day. Já tinha visto tido isso mais de uma vez. Levantou a cabeça desanimada, esfregou os olhos e olhou pela janela a noite escura e quente. Estava mais quente do que deveria pra aquela época do ano. Voltou a caixa de fitas sem esperança.

Olhos famintos. Não gostava de filmes de terror mas a noite longa pedia um filme inédito.

Quando o filme já estava na metade, Miriam ouviu um barulho no quarto da mãe. Prestes a completar 60 anos a mãe de Miriam estava bem pra idade, não tinha grandes problemas de saúde, exceto a pressão alta o que levava a Miriam a ter que controlar se a mãe tomou um comprimido de losartana todos os dias. A professora olhou no relógio. 10:10 PM. A mãe dormia com as galinhas ela dizia, não deveria estar acordada.

Miriam se levantou e foi em direção ao quarto da mãe, abriu a porta lentamente e viu seu corpo deitado na cama de lado com o rosto voltado para a parede.

- Fica longe da pedra. Fica longe da pedra. - a mãe repetiu.

Nunca a tinha visto falar sozinha durante o sono, puxou a porta de volta e virou o corredor.

- FICA LONGE DA PEDRA.

Miriam quase caiu de susto. A voz parecia mais grossa que o normal.

- tudo bem mamãe? - entrou apavorada no quarto olhando a senhora sua mãe deitada confortavelmente na cama, parecia estar dormindo.

Miriam mexeu no corpo que suspirava em sono profundo, a voz que ouvira além de mais grossa do que deveria não parecia ser de sua mãe. Chegou a olhar o quarto de fora a fora como medo de algum intruso, nada.

A mulher confusa atravessou a sala e pegou um cigarro na bolsa que estava sobre a mesinha. A mãos ainda tremiam quando acendeu com o isqueiro e deu a primeira baforada.

Na televisão o vídeo pausado na cena em que Jeepers creepers invade uma delegacia e mata alguns policiais. Com o cigarro entre os dedos Miriam ouviu um barulho em cima do telhado Colonial, algo grande estava em cima do telhado. Uma coruja? O olhos famintos? - é só um filme. Disse pra si mesma. Claro que saber disso não impede uma mente ansiosa de criar ideias. Um barulho sobre as telhas parecia se mover, algo grande estava caminhando por cima do telhado da casa. Abriu a porto e saiu para a rua, de uma distância o suficiente para ver o telhado por completo, não havia nada.

Miriam começou a rir de si mesma. -Loucura. Pensou ela enquanto voltava pra dentro de casa. Antes de fechar a porta olhou para trás, com exceção da luz amarelada do poste, todo resto era negro. As montanhas ao redor só formavam aquele contorno escuro que quase se confunde com o céu nublado, por último passou os olhos pelo telhado da casa do vizinho da frente e viu.

Uma coisa em formato de homem com asas de morcego estava sobre o telhado vizinho olhando para ela, exatamente como o vilão do filme que assistia.

Ofegante Miriam bateu a porta e num estalo tinha puxado a tomada da televisão desligando o filme. Com a mente borbulhando e tentando buscar explicações para o que viu até notar a caixinha de remédios ao lado da TV.

- São os ansiolíticos. Disse ela tentado se acalmar. - É só uma alucinação...efeito colateral dos ansiolíticos.

Por um minuto a mulher ficou repetindo pra si mesma: são os ansiolíticos.

Miriam foi até o banheiro no fim do corredor, fechou a porta e se olhou no espelho, parecia mais velha, parecia exausta e as pálpebras caídas lhe davam uma feição de tristeza. - São só os ansiolíticos. E antes? Quando tinhas suas crises e paranoias que a levaram a fazer o que fez?
A mulher se esforçou para afastar aqueles pensamentos de culpa e autopunição e jogou água da torneira no rosto. De olhos fechados enquanto sentia a água fria nas pálpebras e as remexia voltou com seus pensamentos intrusivos e imaginou uma criança com o rosto deformado, os olhos queimados com soda cáustica, estavam eternamente fechados e cobertos de uma cicatriz assustadora.
Angustiada e tentando esquecer da cena que ela mesma criou em sua cabeça, Miriam secou os olhos em uma toalha que estava pendurada atrás da porta e saiu do banheiro.
Deve ser muito cruel para uma criança nunca mais poder enxergar. Pensou enquanto se jogava no sofá sem saber se o que viu lá fora era real ou loucura de sua cabeça. Estaria louca de novo? Ou será que sempre foi?

Um som curto e estridente soou. Era a campainha.

Abriu a porta devagar olhando primeiro para o telhado do vizinho sem nada e só depois para o portão onde reconheceu o Policial bobão que encontrou mais cedo naquele dia a caminho da fazenda.

-Boa noite... tá tudo bem? Professora?

O homem esteva de farda amarrotada, atrás dele estacionado a viatura com as luzes da sirene piscando deixando uma noite escura um pouco colorida em tons de azul e vermelho.

- Tudo bem sim.

- preciso conversar com a senhora...a senhora já está sabendo? Um de seus alunos acaba de esfaquear o próprio irmão.

Noites NubladasOnde histórias criam vida. Descubra agora