(...)
Ela não notou que o tempo havia passado tão rápido, desde que pôs os pés na esteira de exercícios, milimetricamente frente a janela de seu quarto, no segundo andar.
Um livro de medicina, numa página que vibrava o tema "Infarto", a encarava sem piscar no suporte. Ele estava esperando que os olhos numa mistura azul-esverdeado, tão semelhantes a fragmentos de cristais, se focassem em seu conteúdo, finalmente. Nada, no entanto, desocupava o cérebro da mulher, focada em qualquer ponto além da enorme janela panorâmica com vista para a imensidão do céu descolorido, de Tóquio.Assim Elizabeth se perdia, todas as vezes que pensava. Para o nada, para o cinzeiro das nuvens se formando em gradual, para o vagar de seus passos, para o movimento preciso dos pássaros que cruzavam o horizonte, na linha laranja que começava a surgir denunciando que o dia já havia chegado.
A dor muscular a alertou que já estava indo rápido demais no equipamento. Elizabeth se segurou nas barras, as pernas sem controle de velocidade, perderam força. Conseguiu apertar a tempo o botão retangular que diminuía a potência da esteira. Assim que ela parou, envergou a coluna sobre os joelhos e tossiu, de pulmões apertados. Estava nauseada.
Torcida para frente, pendendo sobre joelhos bambos, ela sentiu que poria todo conteúdo de seu estômago para fora. Bom, como se realmente houvesse alguma coisa ali dentro para desperdiçar.Maldita noite mal dormida. Maldita corrida que não devolveu o sono a ela como tanto precisava! Era frustrante que nem o pior de seu cansaço sobrepujava a perversa insônia, amiga fiel de seus dias.
Quando recuperada, Elizabeth se amaldiçoou.-Droga, Elizabeth! Depois de tanto tempo, como você pode se afetar tanto com isso? Você cresceu! Você é alguém agora. Acorda!
Elizabeth se sentiu tonta, nauseada, a cabeça rodava cada vez que o notebook apitava com mensagens que ela bem sabia de onde.
Levantou-se e retirou a calça de pijama de algodão que usava para dormir e depois a camisa encharcada de suor, ficando totalmente despida. A toalha branca como neve estava na suporte metálico próximo ao banheiro. Tomou-a para si, ignorando agora o toque insistente do telefone. Uma hora quem tivesse do outro lado da linha, cansaria.Elizabeth se sentiu necessitada de um banho frio, no meio dos incríveis oito graus que estava fazendo no primeiro alvorecer de março. Nem se deu o trabalho de ligar o aquecedor mais cedo, pois assim como seu cérebro, o corpo ardia em brasas a ponto de se sentir fumaçando.
Quando a água gélida deslizou por seu corpo, foi como se levasse junto a parte escura da alma que recobria o seu ser . Os nervos eram açoites dolorosos sob a pele alva, a pequena e rápida pulsação na lateral do pescoço foi se tornando uma orquestra de percussão, num ponto atrás do ouvido dela.
Elizabeth respirou fundo... Mais uma vez... A água acompanhando o ar dentro dos pulmões, o equilíbrio se restabelecendo aos poucos, trazendo sua sanidade, de brinde a paz momentânea. Água é vida, é o prazer líquido do sofrimento calado.Secando-se à borda do box, seus pés tocaram o porcelato cor da neve, contraindo os dedos em seguida em forma de relaxamento. Levemente pressionou a toalha nos cabelos, tirando o excesso da água. A toalha foi para o cesto de roupas, junto com o pijama pingando de suor, de cheiro salgado. Do armário retirou um secador e eliminou a umidade dos cabelos recém lavados. Estavam mais escuros que de costume, porém, ainda assim dava para notar o dourado que a fazia parecer mais pálida do que realmente era.
Ouviu batidas leves contra a porta do quarto. Eram quatro e meia da manhã e só havia uma pessoa que poderia, além dela mesma, estar acordada nesse horário.
-Um instante!- pediu educadamente, enquanto pegava a primeira calça e blusa que encontrava pela frente.
Elizabeth se deparou com um perfeito semblante de preocupação, as iris marcantes tão iguais as suas, quando a porta finalmente foi aberta. Elas eram tão parecidas que a outra mulher poderia, facilmente, se passar por sua mãe. A parte paterna era forte e presente. Seja no olhar, seja no porte físico, a presença que preenchia ambientes.
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A Herdeira (Sáfico)
RomanceElizabeth Lord é herdeira de uma multimilionária do ramo da medicina. Morando no Japão há dez anos, onde estava terminando um PhD, ela tem de voltar pra casa no Brasil, após o pai sofrer um infarto repentino. Ela é dada como a única opção para assum...