Provocando temores

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Alguns anos antes Elizabeth teria corrido tremulando-se inteira daquela sala. De verdade. Há quem se pergunte se ela poderia ser mais "resistente" a encarar certas situações extremas, no entanto, há o fato de que ela já foi bem pior do que aparenta. Afinal, ser médico não abria espaços para medos, para receios, embora um médico não caísse longe da árvore que cultiva a vida, o fato de por debaixo daquela profissão, dos jalecos, das ferramentas do ofício, dos cenhos franzidos e resignados, morar a carne de um humano cheio de emoções.

E era isso: Elizabeth era humana. Ponto e vírgula. Uma humana com mais emoções do que um ser humano normal. Que por acaso é médica. Bom, há males que vem para o bem, afinal, foi ali, no meio da profissão acima da carne, que a tão criticamente apontada de covarde, assustada, emotiva, por alguns, ganhou força e coragem.

Nikki pensava, pois assim, por cima de seus óculos de EPI, concentrada por vez na paciente, perdia-se alguns segundos a fitar a neurocirurgiã tão renomada, que ela por acaso conheceu antes de toda essa casca ser formada, desacreditada na pessoa a sua frente, com aquela força no olhar, nos gestos, nos pensamentos contidos numa rigidez tão profissional, que a obstetra sinceramente se questionou se já, algum dia, a conheceu de verdade. Bom, retirando o fato de que ela era um gênio que começou a faculdade com apenas quatorze anos ao tempo que ela tinha dezoito, não seria de se espantar a grandeza que alcançaria embora viesse de família de posses e influência. Seu jeito retraído, este sempre muito criticado na faculdade, acabou por se tornar um mero detalhe.

-Transdutor, por favor!- pedia Nikki, ainda concentrada nas duas cenas a sua frente. A primeira, a paciente com tez de sofrimento e tristeza, gemendo ao mais breve contato que seja a seu ventre, enquanto que em segundo plano, Elizabeth Lord, após ajudar cuidadosamente na Anamnese, capturáva-lhe uma das mãos, e sorria como forma de lhe passar tranquilidade- Vejamos aqui. Lila, você consegue visualizar isso aqui do lado direito da tela?

-Os padrões estão muito turvos, inconcisos. O que seus olhos estão captando que os meus estão tendo dificuldade?

-Exatamente. Não temos visualização e é nisso onde mora o problema.

-Entendo. Nikki, isto pode ser a raiz da hemorragia. Se isso influindo na imagem for exatamente isso, temos de levá-la imediatamente para a sala de cirurgia.

Um som específico e continuo paralisou ambas as médicas, ao passo que Lidia se desesperava mais uma vez numa crescente torrente de dor e preocupação pela reação das profissionais a rodeando.

-Nikki... – Elizabeth falhou sua voz no processo ao mirar a antiga colega aterrorizada- É possivel que... Meu Deus!

Nikki deixava o transdutor de volta com a enfermeira enquanto que Elizabeth limpava o gel do ventre de Lidia, esta chorando copiosamente

- Senhorita, preciso que tente ficar calma agora, acha que consegue?- Lidia somente confirmou com a cabeça, sentindo mais uma onda de dor atingir seu corpo com força. Se agarrava mais as mãos de Elizabeth, que a segurou de volta- Pois bem, acontece que o miserável que lhe causou isso, simplesmente não conseguiu retirar o feto. Ele feriu gravemente seu útero, por isso o sangramento. Ao que tudo indica, o feto ainda está com vida, porém pode estar agonizando. Precisamos urgentemente levá-la para a cirurgia para tentar reparar os estragos. Você tem plano de saúde aqui da empresa?

Antes mesmo que Lidia abrisse os lábios para negar, Elizabeth tocou-lhe acima do peito, lhe enviando um sorriso acalentador.

-Eu sou o plano de saúde dela, Nikki. Dê a ela o que precisar.

Nikki a encarava com uma sobrancelha saltada em completa interrogação, mas resolveu não tecer nenhum comentário sobre o assunto. Ainda.

-Vocês ouviram a Doutora Lord, meninas. Preparem a paciente para a cirurgia. Urgente. Quero tudo disponível em dez minutos, prioridade nos exames de emergência. Você me auxilia, Lila?

A Herdeira (Sáfico)Onde histórias criam vida. Descubra agora