órion

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As estrelas, aquela noite, se comportaram de maneira distinta conforme o limiar entre a noite e o amanhecer se preparavam para trocar de lugar.
Elizabeth se aninhava contra o banco de couro de uma limosine nada discreta, como uma criança sonolenta e encolhida. Os joelhos alcançavam seu peito e os braços os rodearam, ao pousar o queixo de maneira pensativa. Fitando o céu acidentado, mas não suficientemente camuflado, pintava suavemente Órion. A fileira de estrelas, cintilando tão longe, porém ao mesmo tempo tão próxima de sua imaginação, a roubava de sua realidade, de seu momento ínfimo, do olhar questionador de Jeff ao seu lado.

—Será se eu vou querer saber o por que de você estar num lugar como aquele a essa hora da madrugada?— ele disse, somente, num tom de voz reflexivo— Não parece um lugar que você frequentaria.

Elizabeth não se moveu, nem um milímetro. Gotas finas de sereno deslizavam preguiçosamente pelo vidro do lado dela, pequenas silhuetas carregando poeira e detrito de poluição. Jefferson deslizou de volta para sua posição, a mãozorra batucando levemente seu joelho inerte.
Ele podia facilmente ver uma Elizabeth tão pequena e frágil, com dez anos de idade, sentada ao seu lado, da volta do parquinho onde havia ralado o joelho, descendo o escorregador.  Thomas e Margarete estariam discutindo sobre algo no banco da frente, polvorosos. Ela segurando seus dois dedos compridos com uma mãozinha trêmula, em silêncio, os olhos perdidos lá fora, para o Órion apagado e aos pingos da janela, vinte anos antes.

Era estranho como o tempo corria, sem piedade, como em um momento você pudesse abraçar todo espaço de medos de uma criança, de ser um super herói fantasioso e indestrutível a seu olhar, e depois se deparasse com um adulto conciso e preso dentro de sua escuridão particular. Jefferson bem lembrava o tempo que Elizabeth era pura luz.

No entanto, muita coisa não mudava, embora o tempo fosse irônico e perverso. Elizabeth era de uma intensidade contida, seu tio sabia que seu dom com sua presença calma sobrepujava suas palavras. Até o seu silêncio era reconfortante.

—Elie... Aconteceu alguma coisa?

—Estou bem, tio.

—Certo, certo... Hm, você sabe que pode falar comigo a qualquer momento, por qualquer motivo. Não só da empresa.

—Sei que posso— ele a olhou de esguelha a tempo de vê-la mirá-lo com um sorriso cansado, mas terno.

—Parece um lugar bastante peculiar. — ele observava o palitó dela estirado pelo conjunto de banco de couro frente a eles— Carlos tem dedo nisso?

—O corpo inteiro.

—Cuidado com o que ele lhe oferecer. É desmiolado dos pés a cabeça.

—Eu não sou mais criança, Tio. Eu sei lidar com Carlos. Quando eu o encontrar, é claro— ponderou ela, recordando que estava até o presente momento sem o paradeiro de sua carteira, e, posteriormente, descobriu que estava sem a chave do sedan com cheiro de novo também.

—Vou pedir que alguém venha rebocar o carro amanhã. Não se preocupe, ele é assegurado. Agora, querida, você precisa ser mais cuidadosa por onde anda. Aquele é um bairro barra pesada, faccionado. E você ainda estava sem sua guarda. Já imaginou se...

As palavras de Jefferson foram se tornando tão distantes quanto a chuva lá fora, detida pelos vidros blindados a seu lado. Ela tentava suprimir as lembranças que vinham como labaredas alimentadas a gasolina, bastava fechar os olhos, em milisegundos, aquela sensação voltava como uma faca afiada.

No momento que a saia pousou em seu colo, Elizabeth endireitou a postura, com um misto de embaraço e elegância. Tomou a peça entre as mãos e a ergueu, simplesmente, como quem oferece uma taça luxuosa de champanhe. Foi naquele momento, no vagar que os movimentos cronometrados da coreografia erótica de Lady Triz diminuíram de execução, que elas se cruzaram, de verdade. Dois olhares, duas cores, uma intensidade que podia facilmente cortar com uma faca.

A Herdeira (Sáfico)Onde histórias criam vida. Descubra agora