MEIO NOITE

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Era morna noite e os fios dos postes vibravam em atrito com o tempo como cordas nas lajotas irregulares do telhado

A velha pipa sem pele balançava nos elétricos azuis enérgicos que olhavam para um lado e para outro antes de atravessar a rua declinando

O vento serpenteava as roupas no varal e sentia que também sacudia minha mente distraída e a empurrava voluntariamente para o tempo de cima

As nuvens pareciam apenas uma, aglomeradas, não soltava a mão de nenhuma e o pouco céu que restava residia opaco e quebradiço sem estrelas vivas

A garrafa no teto sujo de uma casa baixa à frente da minha me fazia lembrar da inércia das coisas, de como o tempo, mesmo quebrando o tecido do espaço, não movia nada

A noite adentrava não apenas a luz mas também minhas memórias, aquelas que só ousava pensar em sonhos, e que são tão belas que ficava feliz por não existirem mais

Meu sorriso mirava além do que havia no campo de visão, atravessava os postes e fios e os coqueiros no fim do horizonte e até mesmo a última antena que se via tão distante mas tão perto por conta da refração temporal

Encostava a pele nas grades de proteção no desejo apenas de sentir qualquer calor, até mesmo o frio metálico enferrujado que o tempo arrancara sua casquinha casta

Ouvia tudo e o barulho mudo da cidade me fazia repensar meus conceitos de silêncio, imaginando que talvez esse conceito absoluto representasse a morte por inteira do mundo urbano que ficava entre o chão e os aros dos carros

Outra vez o vento me tocava mas para baixo, levando meu corpo para o vislumbre dos azulejos que na verdade não eram azuis e que formavam sem nenhum intuito um quebra cabeças quebrado com todas as cabeças na calçada

Foi naquela noite que dormi sem profundidade e não sonhei com tua silhueta côncava de sempre que fica presente no meu ato principal, e em vão persegui teu nome pelos sonhos de uma madrugada inteira, você vem até mim mas apenas no ensolarado, quando tua lembrança nasce morna e amarela abaixo do meus cabelos matutinos tão bagunçados.

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