Nicholas - 3.000 a.C. América Central.

60 10 3
                                    

O dia estava claro, sem nuvens no céu, e o sol escaldante pairava na metade da imensidão azul. Podia-se ouvir apenas o farfalhar do trigo e os passarinhos cantando. Até o riacho, ligeiramente ao sul, parecia preguiçoso e silencioso. Era um dia perfeito de verão.

O que acordou Nicholas foi a carne de porco na fogueira recém-acesa, o cheiro dela fez sua boca salivar e seu estômago ansiar por um pedaço. Ele se levantou com mais dificuldade do que o esperado, como se seus músculos tivessem esquecido como se mover, pesados como chumbo. O que era estranho, já que Nicholas pesava em torno de 65 quilos, distribuídos em pernas e braços longos e magrelos e com costelas aparecendo.

Ele estava quase desistindo de prosseguir, mas sua fome era mais forte. Por isso, insistiu em cambalear até a fumaça que vinha a poucos metros à frente. Ela aparentava estar ao alcance de seus olhos, mas o trajeto parecia levar uma eternidade. Nicholas caminhava e caminhava e nunca chegava até a fogueira. Que se afastava mais e mais a cada passo que dava, até que, em determinado ponto, sua fome aumentou virtuosamente e ele decidiu correr. Era difícil e exigia esforço. Gotas de suor escorriam por seu rosto, e encharcavam a camisa branca e suja que vestia, mas ele estava quase lá. Quando uma dor dilacerante atingiu sua cabeça e o mundo escureceu.

Nicholas abriu os olhos revelando um tapete imenso de estrelas, que giravam... Giravam?

— Nicholas! Onde você estava indo? — a voz foi emitida em um sussurro alto e irritado.

Quando finalmente conseguiu focar, e desviar o olhar das estrelas para o lado, o rosto da garota que falava tomou forma. Mabel, sua irmã, estava olhando furtivamente para os lados com muita preocupação. A cabeça de Nicholas doía muito e ele não levou muito tempo para encontrar o motivo. Na mão dela, um pedaço de madeira rachado, explicava tudo. Mesmo assim, ele não tinha forças para perguntar, ou explicar, quase não tinha para sequer falar.

— Bacon... — foi só o que ele conseguiu responder.

— Mas o que? — foi só o que ele conseguiu escutar.

Quando voltou a abrir os olhos, pela terceira vez, era dia novamente. Ele estava em sua cama de linho e feno, no interior da cabana de palha onde dormia. Nicholas se levantou e caminhou lentamente até o exterior, onde a irmã alimentava os animais ao redor.

— Ora, veja só quem resolveu acordar — disse ela limpando as mãos e se aproximando dele. — Já encontrou uma nova maneira de nos matar? Quem sabe roubar dos vizinhos? Ou podemos matar alguém no meio da aldeia.

— Como disse? — Nicholas passou a mão pela cabeça, confuso, e acabou encontrando um galo. Lentamente foi lembrando da noite anterior. — Eu? Você quase me matou com um pedaço de madeira. Cansou dos porcos e decidiu abater a carne da família?

— Sua carne podre não serviria de alimento nem aos abutres no céu. Quer fazer o favor de me explicar onde estava indo na noite anterior?

— À noite?

Nicholas balançou a cabeça, que agora latejava, tentando juntar as peças. Ele contou toda a experiência para a irmã, finalizando pouco antes de apagar. Por fim, ele entendeu que se tratava de um sonho.

— Ora, céus! Deve estar possuído — disse ela brincando, Mabel não acreditava nessas coisas, mas ainda assim estava espantada. Quando voltou a falar, sua voz perdeu todo o humor. — Você estava indo para o Além.

O Além. Dali onde estava eles podiam ver o início do local. Depois de muitos quilômetros da planície verde e farta, e depois de uma linha de terra árida, marcando o limite da segurança, havia uma coluna de neblina espessa, erguendo-se em direção ao céu, escondendo todo tipo de coisa, que ninguém sabia o que era. Nem mesmo Mabel, descrente que era, se atrevia a ir lá. Ninguém nunca cruzara aquela linha, bem, ninguém que Nicholas conhecesse, mas diziam ser um local amaldiçoado, onde pessoas entravam e nunca mais saíam, não com vida pelo menos, e os que saíam vivos ficavam loucos e tinham alucinações, assim diziam.

— Você só pode estar brincando.

— Não, Nicholas, você estava cochilando, levantou e foi andando até lá, fui atrás lhe chamando, mas você não ouviu, achei que fosse uma brincadeira, estava quase desistindo, então você começou a correr, chegou a cruzar a marcação — ela sacudiu a cabeça enquanto lembrava. — Parecia um velho sem disposição nenhuma, só por isso consegui alcançá-lo, mesmo assim você não parou, tive que agredir você para que parasse, e ainda tive que arrastá-lo para cá. Fiquei de vigia a noite inteira.

Assim que sua irmã terminou de falar, Nicholas a observou de cima a baixo. Seus olhos inchados estavam contornados com linhas escuras, seu rosto estava apagado, sinais de que ela devia ter ficado acordada a noite toda.

— Não podemos deixar que ninguém descubra, senão irão matar você, dizendo que está possuído. Esta noite, irei te amarrar a cabana, e é bom que você trate de dormir sem se mexer.

Nicholas ouvira boatos de pessoas mortas por terem a marca do mal. Diziam na vila que qualquer homem, tocado por um monstro, estava amaldiçoado e, para conter a maldição, deveria ser morto. Por isso ele apenas concordou, sentindo-se exausto, e sabendo que sua irmã se sentia da mesma maneira, ou pior.

Ele já havia causado problemas e não tinha intenção de fazer de novo. Porém, o único empecilho na ideia de Mabel é que, naquela noite, ela teria que ir até a vila para garantir seu ganha-pão, então não poderia ficar vigiando Nicholas, que precisaria se amarrar sozinho.

O dia foi longo com os preparativos da viagem de Mabel. Eles moravam um pouco afastados da vila, construída longe do muro de névoa, por isso, ela precisaria de muitos suprimentos para o trajeto. Os irmãos já eram malvistos por morarem naquele local, mas não viam problema nisso. Tinham acesso a uma vasta e fértil terra e conseguiam um sustento melhor que a maioria. Eles também eram mais céticos que os outros povos que visitaram e não acreditavam em monstros. Mantinham distância da névoa, mas não tinham medo dela. Durante todos os anos em que moraram ali, só tiveram bons e prósperos momentos. Acreditavam morar próximo ao reino dos deuses e, por respeito, não cruzavam aquele limite.

As horas se passaram enquanto eles colhiam frutos, separavam sementes, e juntavam os suprimentos. Mabel costurou roupas, enquanto Nicholas embalou a carne em sal. E, no entardecer, prepararam a carroça para que ela pudesse ir à cidade.

— Ainda acho que seria melhor você vir comigo — disse Mabel, pela milionésima vez no dia.

— Sabe que há ladrões em volta. Se sairmos os dois, quem irá proteger a casa? Além disso, quem irá alimentar os animais? São três dias de ida e mais três dias de volta.

— Então, ao menos, prometa que vai se amarrar à cama à noite.

— Prometo — Ele deu duas batidinhas nos cavalos para que seguissem. — Faça uma boa viagem! — gritou quando ela tomou distância.

Após Nicholas realizar todas as atividades restantes, ele observou o céu, agora escuro e sombrio, sem estrelas. Decidiu que era hora de preparar-se para dormir. Jantou e apagou a fogueira, fez suas orações e seu reverenciamento diário aos deuses e, enfim, encaminhou-se aos tecidos embolados que formavam sua cama sob a grama. Pegou uma corda grossa e amarrou suas pernas, pensando que aquilo seria o suficiente para impedi-lo de andar à noite.

Como estava enganado.

Celestiais - A Pedra, a Lança e o SeloOnde histórias criam vida. Descubra agora