Camile - Fromista, Espanha. Algumas horas antes.

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Camile sabia que era um sonho. Depois de tantos anos, tendo o mesmo, já não se surpreendia mais quando ele invadia seu inconsciente, mesmo assim, ainda afetava ela. No sonho, como sempre acontecia, ela tinha quatro anos, mais ou menos, e estava sentada em sua cama, brincando, apesar de a sua avó ter dito várias vezes para ela dormir.

Ela não viu por onde ele entrou, ele simplesmente apareceu ali e, da mesma forma como naquele dia, Camile não pôde deixar de notar a semelhança entre eles. Os mesmos cabelos alaranjados, os mesmos olhos verdes redondos, até as maçãs do rosto protuberantes eram iguais. Tão iguais, que ela não teve nenhuma dúvida ou medo, em relação a ele, e também a nada ligada aquela situação.

Seu sorriso era acolhedor. Ele se aproximou com o indicador estendido, e tocou a testa de Camile. Naquele, e em todos os outros sonhos que teve, assim que o homem tocou sua testa, um par de asas surgiu nas costas dela. No escuro, não se podia ver a cor, tinham apenas uma aparência pálida. Ela saltou da cama, pronta para voar, mas, ao invés de levitar, como imaginava que aconteceria, começou a cair, em uma escuridão infinita. As últimas palavras que ouviu foram proferidas pelo seu pai, que agora era um borrão no fundo da memória.

— Ainda não.

Ela levantou em um sobressalto com aquele sonho de cair, e foi direto para o banheiro, lavar o rosto e escovar os dentes. Camile não sabia mais, se aquilo tinha sido um sonho ou não. Sua mãe faleceu quando ela e seu irmão nasceram, e aquela teria sido a única vez que viu seu pai. Suposto pai. Supostamente visto.

Quatorze anos depois, nunca mais o vira.

— Ainda não — repetiu ela, olhando no espelho.

— Mesmo sonho? — Diego entrou no banheiro, rindo.

— Que susto! Qual é o seu problema? É minha hora de usar o banheiro — disse ela, com a mão no peito e a cara de espanto.

— Não ligo para o seu momento de falar com o espelho — ele sentou na privada enquanto falava. — Só não conte para vovó sobre o sonho. Sabe como ela fica irritada com essas coisas, e isso vai acabar sobrando para mim, em algum momento.

Ele tinha razão. Na primeira vez que contou para sua avó sobre o sonho, ela gritou em diversas línguas até perder a voz, e disse para os dois que aquilo era um absurdo. Asas? Bobagem. Para sua avó, somente uma coisa fazia sentido: o trabalho.

O restaurante era sua vida e, a ele, ela dedicava todo seu tempo e esforço. Ele era real, concreto. Os anjos? Eram coisas abstratas, e histórias para atrair turistas. Pelo menos era isso que ela respondia. Até então.

— Celeguitos? Já estão acordados? Vovó precisa falar com vocês! — gritou ela lá de baixo.

— Odeio quando ela nos chama assim — disse Diego.

— Eu até gosto, sabe? Reforça a ideia de que somos gêmeos, como se fossemos um só.

— Não somos gêmeos.

Essa era outra discussão rotineira, embora a história contada por sua avó fosse sempre a mesma. "Sua mãe se relacionou com dois homens, vocês nasceram juntos, no mesmo dia, são gêmeos de pais diferentes", dizia ela.

Mas até Camile entendia as ressalvas do irmão, afinal, contrastado com o cabelo ruivo, sardas, olhos verdes e pele clara de Camile, Diego tinha pele negra, olhos e cabelos pretos. Nem mesmo a textura do cabelo era a mesma, o de Diego, embora ralo, era crespo e volumoso, já o de Camile era liso e tão fino que chegava a ser sem graça. Ela também tinha as linhas do rosto finas e angulares, enquanto ele tinha traços mais vultosos. Não podiam ser mais diferentes. Mas sua avó jurava de pé junto que eram irmãos, e gêmeos ainda.

Celestiais - A Pedra, a Lança e o SeloOnde histórias criam vida. Descubra agora