Capítulo 1

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— Eu não tenho pais. — Respondi ao policial, tentando me esvaziar de qualquer emoção que essa frase possa trazer.

Ele olha com desdém para o secretário ao lado, como se duvidasse de mim. Não posso julgá-lo, outras pessoas já tentaram se safar de um castigo assim. Seu colega de trabalho recebe o olhar como um aviso para continuar a pesquisa sobre minha vida no banco de dados, será que existe alguma identificação específica para quem é órfão?

Com um gesto rápido o policial indica a cadeira preta em frete a mesa

— Por favor, sente-se.

Eu não queria sentar, quanto menos tempo ficasse ali, menos chance de meus tios descobrirem e mais chances de eu não precisar voltar ao lar temporário, entretanto, estremeço ao olhar impaciente do policial e obedeço sem pensar duas vezes. Sorrio agradecendo sua gentileza, apesar de duvidar do gesto supostamente gentil.

Olho ao redor e não vejo ninguém nas celas. Nada parecido com aquele tumulto dos filmes de TV. Todas as viaturas estão no estacionamento, os policiais estão focados na televisão, e as celas estão com cara de que não vêem ninguém há um bom tempo. Supostamente eu pareço ser o caso mais interessante da noite ou do mês, o que faz sentido para uma cidade pequena como esta.

O policial alto e careca ainda em pé do outro lado da mesa, me fita impaciente com minhas respostas curtas e o insucesso das pesquisas ao meu respeito. Ele pega uma rosquinha caramelizada e come metade em uma única mordida, como se isso fosse lhe dar algum tipo de ânimo antes de falar:

— Olha menina, — Solta um suspiro — Eu não tenho todo tempo do mundo, essa cidade precisa dos nossos serviços e você está me fazendo perder tempo. Então, poderia nos ajudar e dar mais detalhes sobre quem são seus responsáveis? Assim acabamos logo com isso — Diz com desdém enquanto lambe as pontas dos dedos.

Quando ainda estava na escola, pouco depois dos meus pais falecerem, eu ouvi muito as pessoas deixarem de se referir aos meus pais como sendo meus responsáveis. Não que mudasse alguma coisa, pois ainda me faziam ensaiar coreografias e escrever cartinhas como se tivesse a quem mostrar, então comecei a guardar pra mim mesma e torcia para que meus pais estivessem vendo de algum lugar

Volto meu olhar para o policial, enquanto meus dedos inquietos brincam com a barra da blusa. Por mais que doa lembrar e atice a minha ansiedade, preciso explicar o contexto caótico da minha vida e sair dali o quanto antes. Talvez se eu disser meias verdades posso evitar que meus tios fiquem sabendo. Respiro fundo antes de falar...Mas não é a minha voz que eu ouço.

— Achei, chefe! — Exclama o secretário como se sua descoberta sobre a minha vida fosse proporcionar sua próxima promoção de trabalho

— Vamos ver agora mocinha de onde você é e tentar descobrir porque você tentou entrar naquela casa. — A boca suja de açúcar do policial se eleva num sorriso astucioso.

Um frio percorre meu corpo ao perceber a enrascada em que me meti. Era pra ser algo normal entrar na casa em que eu sempre morei, destrancar a porta, jogar os sapatos no tapete e me atirar no sofá, mas a diferença agora é que ela não é mais minha. Tudo bem, talvez observando o contexto possa não ser tão normal assim quando a casa não é mais sua. Eu só queria relembrar a época em que eu me sentia parte de uma família de verdade, queria passar pelos móveis e tocar as paredes cheias de memórias. Eu sabia que os móveis não seriam os mesmos, sabia que outra criança poderia estar ocupando o meu antigo quarto. Essa cidade toda é um grande lembrete da minha pior dor e detesto estar aqui de novo.

**

Em lugar sossegado como este o que resta estar atenta ao que passa na televisão. Presa em um suporte na parede, ela prende a atenção dos policiais. Um cantor jovem, talvez de minha idade e de olhos verdes se apresenta num programa e dá uma palhinha de suas músicas. Ele pega um violão e ajeita o microfone no pedestal para que fique na sua altura, joga os cabelos lisos para trás e faz rápidos ajustes no instrumento. Ele usa uma blusa branca com as mangas dobradas e dentro de uma calça de alfaiataria bege. A câmera intercala entre a apresentadora, a platéia e o cantor até que ele finalmente começa uma melodia, movimentando o corpo conforme canta cada palavra como se saíssem de dentro de sua alma, sua voz grave e a intensidade de sua apresentação chama a atenção de todos.

DEPOIS DO PÔR DO SOL - Romance Cristão (DEGUSTAÇÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora