Capítulo 3| O guarda-chuva da sorte

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Adoraria ter uma conversa séria com meu anjo da guarda,- se é que ele ainda não abandonou esse cargo - como posso ser tão azarada assim? "O templo será limpo e sem nuvens no céu" dizia o rapaz do tempo no jornal matinal de titia. Só bastou colocar um pé para fora de casa quando uma tormenta se iniciou acima de mim. Entretanto, graças a uma corridinha consegui pegar o metrô antes que ela me alcançasse. Como esse vagão estava lotado hoje, avistei um lugar no canto do vagão para que eu pudesse me acalmar e ouvir um pouco de música antes de chegar no edifício da entrevista.

Nunca achei que chegaria a ter uma oportunidade dessas tão rápido depois da formatura. Trabalhar num museu de artes antigas... Não era bem o que eu planejava para o início da minha carreira,mas é uma experiência e tanto para uma amante da arte como eu. E confesso que não posso ser muito ambiciosa, pedi apenas que as coisas fossem tranquilas hoje e o universo me corresponde com uma baita tempestade em plena primavera. Tiro um dos lados do fone quando escuto um barulho abafado de uma das funcionárias anunciando alguma estação. A próxima é a minha, dá tempo de ouvir mais uma música. De cabeça abaixada em pé no canto do vagão olho para os meus sapatos. Algo me diz que eu deveria ter escolhido os meus mocassins de sempre e não um par de salto alto. De qualquer forma a vaga é de estagiária, não acho que vão considerar muito isso de mim. Espero.

O burburinho começa de novo e agora é a minha estação. Guardo os fones e o meu celular na minha mochila e esperei um pouco a multidão sair do vagão quando as portas abrem. Estava saindo quando notei um guarda-chuva verde encostado perto da porta. Alguém deve ter deixado no canto pois ele estava pingando ainda. Peguei ele para levar ao achados e perdidos da estação - era um sistema muito interessante, você dizia o horário que achou o objeto e em qual parada você desceu. Daí ficava no sistema deles, então se você perdeu algo podia ir em qualquer um dos "achados e perdidos" das estações que eles localizam o objeto através da sua descrição.

Dessa forma já encontrei muitos dos meus pertences, então sempre tento ajudar quando vejo algo perdido pelos vagões. Estava indo para a salinha dos "achados e perdidos" quando o barulho de chuva me deixa aflita, e resolvo tirar a dúvida. Subindo os degraus da estação minha animosidade se desvanece. Chuva, chuva e mais chuva. Olho para o guarda–chuva. Olho para trás. Olho para minha roupa e meus sapatos, se eu chegar molhada lá minhas chances irão diminuir drasticamente.

Abro o guarda-chuva e sigo resiliente para o prédio do museu que fica a uma quadra da estação - não estou fazendo nada de errado, apenas aproveitando uma das poucas oportunidades que caem de graça no meu colo - tento me reconfortar pela tomada de algo que não é meu.

Chegando lá fico surpresa em ver que havia tantos candidatos esperando para realizar a entrevista. Pelo que meu professor havia falado, eram cerca de 4 vagas para estágio remunerado, onde apenas dois seriam efetivados ao final do período probatório. Procuro um lugar para sentar e ponho o guarda-chuva encostado na minha cadeira. Fico revisando meu currículo enquanto espero, eles não falaram o que iríamos fazer mas aposto que iremos servir cafezinhos ou preparar documentações sobre os acervos. Algo do tipo, bem no estilo "faz tudo" mesmo.

Quando eu cheguei ele já estava entrevistando alguém, acho que deram horários diferentes para cada um. Tentei ouvir mais sobre o que os outros candidatos falavam, mas o barulho da chuva estava me atrapalhando. Uma moça com uma prancheta em mãos sai de uma das salas que ficavam no fundo. Ela vai para nossa frente e chama meu nome.

É a sua vez senhorita, me acompanhe por gentileza.- Ela faz um sinal para que eu siga-a até o corredor no fundo do lugar onde estávamos.

Pego o guarda-chuva e entro no corredor, a porta da sala se abre e alguém sai de lá. Meu coração sai pela boca quando eu reconheço na figura que se aproxima uma jaqueta jeans verde militar. "Nem ferrando..." - Meus olhos arregalaram quando eu conseguir ver melhor, era o carinha da lanchonete. Não acredito que ele também veio fazer a entrevista. Ele saiu sorrindo da sala, mas assim que virou para o corredor foi notável ver a seu sorriso se desmanchando dando lugar a aflição. Acho que ele acabou sendo pego pela chuva, seu cabelo estava molhado e jogado para trás. A camiseta branca social que usava por dentro estava toda amarrotada e a jaqueta que cobria a estava com o tom de verde mais forte nos ombros, indicando que estava encharcada de água. Ele mordeu os lábios e parecia falar consigo mesmo olhando para o chão, vindo em direção a mim e a funcionária.

Espero que a entrevista tenha sido boa, até mais! - A funcionária fala com gentileza tentando animá-lo.

Ele olha para ela e acena com a cabeça - talvez tentando convencer a si mesmo de que tinha se saído bem afinal. Depois olha de relance para mim e volta o olhar para "meu" guarda-chuva. Nesse momento, andou mais devagar, quase parando. Conseguia sentir seu olhar por cima de meus ombros depois que passei pela sua frente. Entro na sala tentando me concentrar em garantir uma boa impressão para o meu entrevistador. Marcas de pegadas um pouco lameadas estão por todo o chão, me fazendo lembrar que talvez meu conhecido da jaqueta não tenha causado uma boa impressão.

Boa tarde! - Digo para a banca e me sento na cadeira de frente para eles. Um homem por volta dos 50 anos, uma jovem muito bem arrumada um pouco mais velha que eu, e um cara de terno da mesma idade aparentemente. Um barulho de trovão abafa as vozes deles por um momento.

一 Desculpe-me, o que você disse? Eu não ouvi direito.- Me inclino para frente para ouvir.

一 Boa tarde novamente madame... Holtz? - O senhor mais velho ajeita os óculos enquanto olha meu currículo.

一 Sim, sou eu.- Ajeitei minha postura na cadeira desconfortável.

一 Nossa que chuva desagradável, será que vai atrapalhar nossas entrevistas? - a moça mais jovem fala com uma voz de desânimo. 一 E se faltar energia? - ela arregalou os olhos.

一 Não se pode mais confiar no climatologista, infelizmente. - digo espontaneamente.

一 Como assim, senhorita? - O senhor mais velho franziu a testa, e os outros olham para mim.

一 Ah... É que no jornal hoje de manhã dizia que não iria chover, pela semana toda pelo menos.- Aumentei um pouquinho a verdade. Talvez assim alivia a má impressão que tiveram do carinha misterioso encharcado.

一 Ah que chato. Isso explica muita coisa...- Eles trocam olhares por um segundo, voltando seus olhares para mim. A entrevista segue com uma série de perguntas padrões, algumas das respostas estavam no currículo, mas acho que nem se deram o trabalho de ler com atenção. Eles conversam entre si e de repente sou pega de surpresa por um dos avaliadores.

一 Oh! Não acredito que você fala francês, é a minha língua materna, minha mãezinha cantava em francês para mim todas as noites.- diz o senhor sentado no meio da enorme mesa de madeira. Ele tem rugas marcando o rosto, poucos fios brancos pela cabeça, e usa óculos de lentes bem grossas. Algo na forma em que todos sorriam quando ele falava me dá a impressão que ele é o superior aqui.

一 S-Sim senhor, eu aprendi quando era mais jovem...É uma língua que tenho muito carinho.- digo calmamente dando um singelo sorriso no final. Deveria recompensar minha eu do passado por ter conseguido finalizar o curso de francês, sabia que serviria para algo. Um momento se passa com eles analisando meu currículo e finalmente sou liberada.

一 Entraremos em contato senhorita Holtz! Foi um prazer. - diz a moça do canto da mesa dando um sorriso fechado, indicando com a mão para a porta da sala.

A entrevista até que não demorou muito, saí da sala e logo tirei o meu celular do bolso. Digito uma breve mensagem para minha tia, dizendo que estou indo para casa. Me aproximo do saguão do edifício e não escuto mais barulho de chuva. Acho que não vou precisar mais dele por enquanto 一 suspiro, olhando para o guarda-chuva em minha mão. Ele está pingando ainda, deixando um rastro pelo piso. Mas minha troca de pensamentos com o pobre guarda-chuva é interrompida quando sinto algo se aproximando de mim. Escuto o barulho de sapatos molhados mas continuo mantendo o olhar para o chão.

一 Oi.- ouço alguém dizer. É uma voz grossa, e calma, mas sinto que há uma certa seriedade. Levanto meu rosto e arregalo os olhos de surpresa. É ele.

Um Estranho conhecidoOnde histórias criam vida. Descubra agora