Por um certo momento quando arrumava minhas coisas para sair do prédio imaginei que talvez fosse vê-lo também. De longe, de modo furtivo, para que não notasse minha presença, mas para que eu pudesse admirá-lo mais um pouco, já que provavelmente não o veria tão cedo. Em nenhum momento pensei que ele quisesse me ver, e muito menos falar comigo. Antes que minha expressão de coruja fosse assustá-lo soltei uma saudação.
一 Ah...Oi.一 Ainda meio perplexa com a situação tentei ajustar minha postura, colocando o celular no bolso e o guarda-chuva rente as minhas pernas.
一 Com licença, mas você pegou o trem 025 esta manhã? 一 Dá uma leve acentuada na voz quando seus lábios dizem a última palavra.
Assenti de leve com a cabeça.一 Por quê? 一 retruco, e sinto seu olhar cair para as minha mãos em resposta.
一 Eu esqueci meu guarda-chuva mais cedo, no mesmo trem, no vagão onde tem pichações coloridas no teto. E eu acho que é este que está em suas mãos.一 Se inclina um pouco para frente para olhá-lo mais de perto. 一 É. Sem dúvidas, 一 aponta para o cabo brilhante do guarda-chuva, tem várias figurinhas coladas nele. 一 é o meu guarda-chuva, fui eu que colei essas figurinhas quando estava na faculdade.
Olho para as figurinhas de borboletas, meio desgastadas, igual a todo o resto do conjunto.一 Como eu posso acreditar que ele é seu mesmo? Pode ter inventado essa das figurinhas. 一 digo com um tom sarcástico. Na realidade, eu até acredito que seja tudo coincidência, e que o tal objeto seja de fato dele, mas eu não me aguentei, algo no tom de voz dele me fez com que eu o desafiasse.
一 Ele é meu com certeza, abra-o.一 Indica com a mão, e eu faço.一 Tem duas tiras de ferro que estão quebradas. Dou uma olhadinha e realmente tem duas tiras que se balançam à medida que giro o guarda-chuva.
一 Certo. Deve ser mesmo seu, tome 一 fecho-o e entrego nas mãos do rapaz que ainda tem roupas úmidas pela chuva. 一 Eu devia ter entregado ao achados e perdidos mas fui pega de surpresa pela chuva.一 dou um sorriso fraco tentando me isentar da culpa de ter pego algo que não era meu. Me pego analisando com cuidado sua figura enigmática enquanto ele se distrai com o objeto verde escuro. Me sinto um pouco angustiada ao ver suas roupas úmidas, ele não me parece com frio mas seu rosto está pálido. Aliás que rosto, de perto ele parece ainda mais charmoso. Olhos negros. Pálpebras meio caídas, dão uma leve melancolia ao seu olhar estreito. Seu semblante é naturalmente sério, apesar da voz calma e das covinhas nas bochechas. Sua pele é lisa, com leves manchas e cicatrizes pelas bochechas, olhando de longe parecem até sardas. Meus olhos descem para sua mandíbula levemente retangular e para o seu pescoço escondido pela gola da jaqueta quando de repente ele chama minha atenção.
一 Obrigado.一Pigarreia, e depois esboça um leve sorriso de canto da boca enquanto anda para trás, vira-se em direção a saída e some. Como se aquilo tudo fosse só fruto da minha imaginação.
Suspiro, me derretendo por dentro e provavelmente por fora 一 toco minhas bochechas em fogo, tiro o celular para ver meu reflexo mas acabo vendo o horário. 一 Ai droga!一 Corro em direção a entrada. Vou perder o meu trem, e se eu o perder vou ter que esperar o das 18h, que sempre vem lotado. Não quero virar uma sardinha enlatada. Acabo percebendo que a chuva que caíra quando cheguei ainda está firme e forte lá fora. Fico parada em frente a fachada do edifício. Acho que se eu correr um pouco eu vou me molhar mas acabo chegando a tempo, estou indo para casa afinal. Enrolo meu celular em um plástico que havia na minha bolsa e o enterro bem no fundo. Espero que assim ele não molhe. Começo a andar quando percebo que estou de saltos. Droga... Assim não vai dar. Tiro meus sapatos, já que correr de salto alto vai provavelmente ocasionar em uma queda. Mesmo assim sinto dó da minha meia calça que ficará manchada e toda suja depois dessa maratona. Agora sim. Respiro fundo e tomo coragem para correr pela calçada até a entrada da estação.
Começo a correr e sinto uma figura tentando me alcançar, de repente em meio ao barulho da chuva caindo surge um grito.
一 Ei! 一 olho instantaneamente para trás e vejo o rapaz da jaqueta verde se aproximar de mim com seu guarda-chuva em punho. 一 Você vai para a estação agora? 一 suas palavras saem quase como um berro mas são abafadas pela chuva que de repente ficou bem mais forte de que eu me lembre. Ele me alcança e pousa parte da sombra em cima de mim.
一 Quero tentar pegar o trem que sai agora.一 começo falando alto mas quando ele se aproxima de mim minha voz falha, a sentença toda finaliza quase como se fosse um murmuro.
一 Eu também estou indo, posso compartilhar ele com você, 一 levanta o rosto para o guarda-chuva que está nos impedindo que a chuva molhe nossas faces.一 se você não se importar é claro.
一 Obrigada! Eu já estava pronta para me molhar...一 desvio o olhar para meus pés que já estão molhados.
Ele acompanha meu olhar, e fita meus pés descalços e minha meia calça bege molhada até a altura dos tornozelos 一 Porque tirou os sapatos? 一 faz uma careta.
一 Ué, porque eu estava correndo. Não queria cair..一 sinto as gotas de chuva alcançarem minhas canelas e relembro o motivo de minha pressa. Olho para frente com urgência.一 Precisamos ir logo, senão vamos perder o trem das 18h!
Viro-me em sua direção e agarro seu punho que estava segurando o cabo do guarda-chuva, sinto ele recuar um pouco mas acaba me acompanhando na corrida. Corremos até nos depararmos com o sinal vermelho, paramos para recobrar o fôlego.
一 Você é...bem veloz! 一 ele diz ao se curvar para frente.
一 N-Não, só quero chegar logo.一 arrumo algumas mechas de cabelo para trás, sem sucesso, elas voltam para frente com o dobro de rebeldia. A esta altura devo estar um desastre.
O sinal abre, e antes que ele começasse a falar eu o puxo novamente. Olho de canto de olho e tenho a impressão dele estar sorrindo. Viro o rosto e foco em não escorregar pelo cimento com musgo. Mais alguns segundos e nós conseguimos chegar até o vagão do trem. Solto sua mão e adentro, procurando algum lugar no fundo para me sentar, sinto ele me seguindo com os olhos, logo atrás de mim.
Escolho meu acento e ele se senta ao meu lado. Não muito próximo. Mas perto o suficiente para que ninguém consiga se sentar entre nós. Eu o observo, tirando sua mochila e a colocando em cima do seu colo. Ele abre o zíper da frente de sua jaqueta e arregaça as mangas. Sua camisa branca social está a vista, intacta sem um pingo se quer de chuva, ele e afoga sua gravata cor de vinho. Consigo ver algumas cicatrizes por seu antebraço direito. Apesar da camisa não estar molhada, consigo ver que ele é forte, deve praticar exercícios ou algo do tipo.
一 Não vai calça-los agora? 一 Ele percebe que eu estava observando-o, mas o seu olhar desce para os sapatos em minha mão.
一 S-sim.一 me curvo para calçá-los e fecho os olhos de vergonha. "Poderia por gentileza parar de secar o rapaz sua tonta?" me repreendo internamente.
Termino de calçar meus saltos e ajeito minha postura no banco. Geralmente, quando estou indo para casa costumo ouvir música. Encaro meus pertences na bolsa ainda molhada da chuva. Mas, nessa situação, não sei como puxar conversa com ele. Tudo o que surge na minha cabeça parece idiota. "Tempo ruim hoje né?". "Nossa adorei sua jaqueta". "Se saiu bem na entrevista?".
Argh...一 resmunguei para mim mesma. Levanto minha cabeça para observar o que meu amigo silencioso está fazendo, mas sou pega de surpresa novamente quando vejo que ele estava me olhando.
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Um Estranho conhecido
ChickLitTodos os dias nós vemos e nos relacionamos com pessoas diferentes. De uma fora ou de outra precisamos socializar para que possamos conviver em sociedade. Na história da humanidade grandes ideias surgiram da colaboração de dois ou mais mentes brilhan...