Frad

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Sensações.

A primeira sensação do meu dia foi dor, quando eu senti meu corpo cair e bater contra o chão de pedra.
A segunda sensação foi companheirismo. Companheirismo por eu não ter sido o único a cair. Haviam outros cinco junto comigo, todos caíram quando um homem desprendeu a corda da coluna maciça que a segurava.
A terceira sensação foi confusão. Essa última durou pouco mais de cinco segundos, que foi o tempo que eu demorei para me levantar. Finalmente consegui recobrar o que estava acontecendo e o motivo de eu ter adormecido num beco entre duas construções: Eu não tinha muitas escolhas no leque.

Aqueles cinco homens junto de mim estavam passando pelo mesmo. Não tinham onde dormir, e temiam que a vigília noturna os pegasse ferindo o toque de recolher. Por isso, pagaram dois Dobrões-de-Zahi para dormirem em pé, com o peso apoiado em uma corda que estava amarrada entre duas colunas, e era desamarrada todo o dia às cinco da manhã, forçando quem ainda estava dormindo a acordar de encontro com o chão.

O sol quente não era capaz de atravessar a fumaça negra que saía pelas chaminés das fábricas naquele podre verão. Mas o calor ainda abraçava o país, e aquecia aquele cheiro de fumaça misturado com os excrementos dos cavalos e os resíduos que eram expelidos diariamente no rio. Dito isso, posso afirmar que a quarta sensação que eu senti enquanto caminhei pelas podres névoas quase não enxergando o que havia a dois metros de mim foi nojo, e essa sensação se extendeu por um bom tempo durante aquele dia. Não, eu não tinha escolha.

Após o que pareceu ser oito minutos de caminhada, finalmente cheguei no Krug's Saloon. O barzinho de esquina estava relativamente limpo, quase que me convidando a entrar e me salvar do Grande Fedor do lado de fora.
Foi exatamente o que fiz. Entrei no bar sem pestanejar, e me sentei em um dos bancos. Tudo que eu tinha nos bolsos era uma Coroa-de-Mara, dois Dobrões-de-Zahi e um relógio de bolso, com o vidro rachado. Era a única coisa que tinha sobrado. A única coisa que eu tinha, e protegeria até o fim com a minha vida.

Foi enquanto eu contava minhas moedas que Krug apareceu em minha frente.

- Como você ainda tem a cara de pau de dormir numa corda? Já te disse que pode dormir lá no armário de vassouras.
- Como você sabe que dormi na rua?
- Você está encardido! Deve ter ficado juntando fuligem a noite toda.

Não tinha reparado. Minha camisa interna, um dia branca, estava em um tom de cinza quase preto. Passei a mão por uma mecha de cabelo minha, e, ao trazer à vista de meus olhos, vi que o tom alaranjado se tornou um marrom bem escuro e triste.

Ele acariciou o queixo e disse:

- Nunca pensei que fosse dizer isso, mas creio que você precisa urgentemente de um banho.

- Que banho o quê? Me passa esse pano aí que eu resolvo isso agora.

- Você não vai se limpar com o esse pano - disse ele entre uma risadinha calma.

- Certo, certo. Enfim, eu estou aqui, posso começar logo?

- O uniforme está lá nos fundos. Limpe o rosto, e pelo menos lave o cabelo e barba.

- Sim senhor - foram as palavras que tive coragem de dizer. Eu tinha medo de banhos.

- Ah, e Frad.

- Diga.

- Leia as notícias de hoje, o jornal chega aqui às seis e meia da manhã.

Fiquei curioso, como se uma sirene interna apitasse dentro de mim.

Eu senti ansiedade, a quinta sensação do dia.

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O tempo passou lento, porém tranquilo. Nada de tão marcante aconteceu.
Creio que a única coisa que chamou mais minha atenção foi ver como Krug havia envelhecido. Eu conheci ele quando eu era um pirralho, e nem percebi o quanto os seus cabelos foram diminuindo e se tornando cada vez mais grisalhos. Ainda assim, ele não tinha se aposentado ainda. Precisava manter o saloon em nome de sua esposa.
A Pray havia falecido uns oito anos atrás, e levara consigo uma vida em seu útero. Ela também não tinha escolha. Ela era uma figura materna para mim. Sentia muita falta dela, e comecei a ajudar Krug no saloon após isso.

Não Tínhamos EscolhaOnde histórias criam vida. Descubra agora