Já estou ficando irritada por não conseguir parar de tremer. Balanço minhas pernas numa fracassada tentativa de aliviar a ansiedade, mas mal consigo segurar o copo de água com açúcar que me deram assim que cheguei esbaforida à delegacia, segurando um olho claramente humano e tremendo dos pés à cabeça. Só queria sair e fumar um cigarro para me acalmar, mas estou cercada por todos que foram no grupo de buscas comigo, além de Donnie em sua cadeira de rodas e mais alguns curiosos, e não consigo forças para me levantar agora e passar por eles até a saída.
A imagem daquele olho me encarando sem vida é, talvez, uma das piores coisas que já presenciei. Arrisco dizer que é equivalente a encontrar meu pai no porão quando tinha quinze anos.
Ouvi dizerem que vão fazer um teste de DNA ou algo assim para terem certeza de que o olho é humano. Mas eu não preciso disso para saber. Assim que cheguei na delegacia e vi mais uma vez o cartaz de desaparecido de Eddie, soube no mesmo instante onde estava um daqueles olhos azuis do garoto na foto.
Nas minhas mãos.
***
Acho que cochilei no banco, caída no ombro de Helena, pois de repente tomo consciência e metade das pessoas já não estão mais aqui.
— Ah, você acordou — diz uma senhora que demoro a identificar como sendo a Srta. Riley, uma mulher simpática, ainda que inconveniente, com cabelos mais brancos que a neve no chão lá fora e vestindo rosa da cabeça aos pés, tão magra que alguns de seus ossos chegam a ser visíveis. Ela me encara com um sorriso acolhedor. — Pobrezinha, deve estar muito assustada. Venha, eu te ajudo a levantar.
A Srta. Riley não mede esforços em me segurar pelos ombros e me colocar de pé, e me sinto um pouco invadida enquanto ainda recobro a consciência com dificuldade. Helena se levanta ao mesmo tempo e viro o rosto para ela, perguntando com os olhos o que está acontecendo.
— Você dormiu por quase duas horas — ela explica calmamente. — Já é meio-dia. Syorah e o marido abriram o restaurante e ofereceram um almoço a todos os voluntários de hoje. Vamos lá?
Pisco algumas vezes ainda um pouco confusa, mas então acordo de uma vez e concordo com a cabeça, acompanhando minha irmã e seu marido, que tem a cadeira empurrada pela Srta. Riley.
— Vocês falaram sobre a cabana? — questiono assim que entramos todos no carro para percorrer as quadras que nos separam do restaurante. Sinto um desconforto no estômago típico da fome e quero chegar logo para comer. — Eu acho que eu vi mais alguma coisa antes de aqueles corvos nos atacarem.
— Ah, eu ouvi alguns policiais falando sobre essa tal cabana, sim — a Srta. Riley se intromete no assunto respondendo por Helena ou Donnie. Eu nem sequer havia percebido que ela entrou no carro conosco. — O xerife disse que iria até lá analisar, mas que achava que não encontraria nada além do que vocês viram. Vocês foram o grupo que mais trouxe novidades ao caso, sabiam?
Ninguém responde. Helena dá partida no carro e muda de assunto:
— O que você viu, Sarah?
— Parecia uma cerca velha — tento puxar as lembranças na memória, mas tudo que vejo são as garras furiosas de um corvo vindo em minha direção. Checo mais uma vez se não fui machucada, mas por sorte consegui sair sem nenhum arranhão. — Alguns pilares de concreto e arame farpado, eu acho. Mas não tenho certeza.
— Então precisamos voltar depois para que você conte isso à polícia também — Donnie conclui. — Talvez tenha algo além da cerca que os ajude.
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A Lacuna
HorrorEstar em New Chamor é como viver o mesmo dia todos os dias. A pacata cidadezinha com pouco mais de dois mil habitantes, cercada por florestas, é um paraíso para aqueles que preferem uma vida mais amena. Perto do Natal, o único acontecimento incomum...