Ouço Helena xingando baixinho enquanto enfia roupas em uma mala, bastante agitada. Eu observo a chama da vela consumindo a si mesma, perdida em pensamentos vazios. A cidade toda está imersa em escuridão há cerca de meia hora, sem dar sinal algum de que voltaremos a ver alguma luz que não seja a das estrelas enquanto o dia não amanhecer.
Algo — alguém — causou o apagão, não foi por acaso; e minha irmã sabe muito bem disso. Ela está arrumando as malas para que saiamos desta cidade enquanto tudo não acabar.
— Onde você pretende ficar? — pergunto, ainda sem olhar para ela e mantendo o foco nos tons de laranja que iluminam meu rosto.
— Nós vamos ficar em um hotel na cidade vizinha — consigo sentir o tom de irritação em suas palavras. Ela está possessa por ter alguém aqui pegando nossa gente. Está brava porque nenhuma autoridade faz seu trabalho direito e porque um sujeito aleatório decidiu começar todo este caos e arruinar nossas vidas. Helena está furiosa e eu entendo perfeitamente seus motivos.
No entanto, apesar de eu estar perfeitamente ciente do perigo que todos corremos por simplesmente estarmos aqui, uma sensação estranha aperta meu peito, dizendo sutilmente que devo ficar. Sei que, se não fosse por essa voz subconsciente afirmando que será pior sair da cidade do que permanecer nela, eu mesmo agarraria minha irmã e seu marido pelo braço e nos tiraria daqui imediatamente.
— Helena, eu...
Paro de falar assim que Donnie aparece mancando no quarto com sua lanterna, e consigo perceber como seu rosto está pálido, branco como papel, mesmo com a pouca luz no ambiente.
— Vocês se lembram da Sra. Riley?
Um calafrio gélido percorre meu corpo e faz meus pelos do braço se arrepiarem.
Sei exatamente o que Donnie quer nos dizer. A simpática senhora, embora um pouco enxerida, que esteve conosco em algumas ocasiões nos últimos dias, auxiliando meu cunhado com a cadeira de rodas. Agora é apenas mais uma vítima.
— Ela sumiu também? — Helena pergunta, mesmo que, assim como eu, já imagine a resposta.
— Pior — a voz de Donnie falha. — Encontraram o corpo dela no estacionamento da delegacia. Ela estava sem os olhos.
— Quem te contou isso? — minha irmã o questiona com a voz firme, mas consigo sentir seu medo em meio às palavras amargas.
— Recebi várias mensagens de várias pessoas. Não se fala de outra coisa. Ninguém sabe mais o que fazer.
Entendo muito bem. Eu sinto que não consigo associar realmente o que acabei de ouvir. Aquela velhinha simpática está morta. Uma hora atrás, estava conosco. Agora, é apenas mais uma vítima. Simples assim.
— Bem, eu sei — ouço o zíper da mala sendo fechado com brutalidade, e em seguida a pancada do objeto caindo no chão. — Sarah, me ajude a carregar essas malas até o carro. Donnie, não saia de perto de mim.
Helena puxa uma das malas pela alça e eu faço o mesmo com a outra. Nenhuma delas é minha, então imagino que eu terei de prepará-la também, apesar de ter trazido poucos pertences para a minha estadia temporária. Donnie nos acompanha, caminhando com dificuldade em suas muletas, enquanto ilumina o caminho com a lanterna. Levamos tudo até a garagem, onde o carro está já preparado, com o porta-malas aberto. Nós as encaixamos no espaço pequeno, mas suficiente, e voltamos para dentro.
— Veja se você tem tudo o que precisa aqui — Helena me orienta com autoridade, experiência de ser uma professora da escola primária. — Senão, vamos passar na sua casa antes de partir.
— Você tem certeza de que é mesmo uma boa ideia deixar tudo pra trás agora? — arrisco dizer. Sinto minha irmã fuzilando seu olhar em minha direção.
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A Lacuna
HorrorEstar em New Chamor é como viver o mesmo dia todos os dias. A pacata cidadezinha com pouco mais de dois mil habitantes, cercada por florestas, é um paraíso para aqueles que preferem uma vida mais amena. Perto do Natal, o único acontecimento incomum...