Não me recordo exatamente do que estava fazendo um ano atrás. Mas sei que, provavelmente, dormi até tarde e almocei ainda de pijama. À tarde, fui até a casa de Helena e nos arrumamos juntas para ir à igreja de noite assistir ao culto especial de natal. Geralmente é assim o dia que antecede esse feriado tão importante.
Mas hoje, 24 de dezembro de 2011, não existe almoço de pijamas e culto especial de natal. Pois, apesar de luzes coloridas caírem por sobre árvores de toda a cidade em direção ao chão, não há motivos para comemorar.
— New Chamor pode ser pequena — diz Helena em um megafone que não sei de onde surgiu. Uma grande multidão se espalha pelo estacionamento da igreja, onde nos reunimos há cerca de meia hora. —, mas isso não quer dizer que somos insignificantes. Nós temos valor! Nossas crianças têm valor, nossos jovens têm valor! Não importa se é apenas um de nós correndo perigo, ou dois, ou três. Todos precisamos e merecemos respostas!
Minha irmã toma um gole de água da sua garrafinha e limpa a garganta antes de continuar.
— Edward Collins. Grace Smith. Leslie Peters. Quem será o próximo? Se depender dos policiais que aqui fingem trabalhar, pode ser qualquer um de nós. Vamos exigir nossos direitos! — a multidão grita um "sim" em resposta. — Queremos que encontrem e prendam o monstro por trás disso tudo! Queremos justiça!
— Justiça — todos reverberam, e inclusive eu mesma.
— Vamos todos juntar as mãos e caminhar em silêncio até a delegacia — Helena continua. — E não vamos sair de lá até que nos esclareçam o que está sendo feito pela nossa segurança.
Mais uma vez procuro Rachel em meio ao povo, mas não a encontro. Eu a convidei para estar aqui conosco, mas aparentemente ela não vem. Tento afastar da mente os pensamentos de que possa ter acontecido algo, pois, convenço a mim mesma, nada poderia acontecer com ela.
Helena parou de falar e guardou o megafone. Agora, ela e Donnie, que se esforça ao máximo para manter-se em pé com as muletas mesmo tendo a cadeira de rodas disponível logo ao lado, conversam com quem reconheço serem os pais de Eddie, um dos garotos desaparecidos. Eles parecem agradecer minha irmã pelo esforço que ela tem feito.
Então, em meio ao bando de pessoas aqui reunidas, ouço alguém chamando meu nome.
Olho ao redor, tentando procurar quem foi, mas não parece ter sido ninguém. Nenhuma dessas pessoas olha para mim como se estivesse me procurando.
— Sarah! — ouço mais uma vez, agora na direção oposta. Parece a voz grossa de um homem, mas não consigo imaginar qual homem iria querer me chamar, e muito menos por quê.
Penso que pode haver outra Sarah por aqui, e seja ela quem deve atender ao chamado. Mas então ouço mais uma vez, e tenho certeza de que é para mim. Me afasto caminhando em meio ao acúmulo de gente, indo em direção ao adro, onde uma trilha de pedras antigas estende-se ao longo do gramado coberto de neve até chegar na área delimitada repleta de lápides.
Não gosto nada deste lugar. Sinto arrepios pelo corpo todo, mas sei que não é pelo frio. Só preciso caminhar mais um pouco para encontrar as duas lápides de pedra com aqueles nomes familiares cravados nelas.
Quase como se eu não pudesse controlar meu próprio corpo e obedecer minha vontade de voltar até onde a população se reúne, continuo indo cada vez mais perto. Então me ajoelho na neve em frente aos túmulos e passo a mão pela textura áspera da pedra em formato arredondado que carrega o nome do meu pai.
Frank Miller
13/05/1958 - 25/10/1996Não consigo conter as lágrimas. Quero me levantar e sair daqui, mas permaneço, com uma das mãos sobre a boca tentando parar os soluços. Com a vista embaçada, desvio o olhar para a lápide de minha mãe, e consigo ver seu nome antes que meu choro fique descontrolado e minha visão, totalmente opaca.
Lara Carter Miller
13/05/1959 - 12/02/2007Sempre achei muito romântico o fato de o aniversário dos meus pais ser no mesmo dia. Era tradição que Helena e eu os acordássemos com café da manhã na cama. Mas, depois da morte de nosso pai, a tradição foi sumindo ano após ano, e, depois que a mãe também se foi, o dia treze de maio tem sido o pior de todos os 365 dias do ano. Ele é sombrio e carregado, e, apesar de ser apenas mais um para o resto do mundo, para Helena e eu é quase uma representação física de que agora estamos sozinhas.
Ajoelhada, abaixo a cabeça e encosto minha testa na pedra fria do túmulo de Lara Miller. Minha mãe. E, mais uma vez, sinto a culpa penetrando meu corpo como uma espada que me atinge diretamente no coração e me faz sangrar até perder as forças.
— Me perdoa — sussurro com a voz embargada. — Me perdoa, mãe. Eu sinto muito.
Permaneço ali, limpando cada lágrima que cai, ao passo que novas surgem, e não sei quanto tempo se passa até que sinto alguém se aproximar e colocar repousar suas mãos em meus ombros.
— Sarah — diz Helena com sua voz doce e reconfortante, ajoelhando-se ao meu lado e me abraçando. Aceito seu gesto mas sem abraçar de volta, pois não tenho forças. — De novo isso? Você estava indo tão bem...
Desabo sobre o peito de minha irmã como uma criança assustada por um pesadelo. Cubro meu rosto envergonhada.
— O que aconteceu? — ela pergunta. — Por que você veio aqui?
Tento engolir o choro para responder, me sentindo absurdamente fraca. Respiro fundo para me recompor e então me levanto, limpando a neve que ficou grudada na calça. Helena se levanta em seguida e segura minhas mãos.
— Eu ouvi alguém me chamando e, quando percebi, já estava aqui mais uma vez — olho de relance para as pedras que se erguem da terra. Tão pequenas, mas tão carregadas de singificado. Limpo meus olhos úmidos outra vez. — Acho que estou ficando maluca.
— Todos estamos, eu acho — Helena tenta me acalmar me envolvendo com o braço. — Mas vamos logo, já vamos sair.
Andamos juntas, sem muita pressa, de volta ao lugar de onde saímos.
Então, novamente, ouço a voz grossa e imponente de antes.
— Sarah!
É quase um grito sussurrado, como se a pessoa quisesse e não quisesse ser ouvida, ao mesmo tempo. Mas eu ouço. E Helena também.
Nós duas viramos o rosto em direção à voz, e lá, em meio às arvores que dão início à floresta, está o responsável. Eu o reconheço na hora.
O homem de pele negra com manchas claras do vitiligo sorri de uma forma quase vilanesca, acenando com uma das mãos. E então ele se vira e corre floresta adentro. Helena segura minha mão com força e me faz caminhar rapidamente com ela até o pátio da igreja.
— Vamos embora daqui — diz ela. — Não saia mais de perto de mim sem avisar.
Então nos juntamos à multidão, e, todos de mãos dadas, caminhamos pelas ruas de New Chamor até a delegacia.
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A Lacuna
HorrorEstar em New Chamor é como viver o mesmo dia todos os dias. A pacata cidadezinha com pouco mais de dois mil habitantes, cercada por florestas, é um paraíso para aqueles que preferem uma vida mais amena. Perto do Natal, o único acontecimento incomum...