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Vejo estrelas e vejo cores, um milhão de cores. Acho que algumas nem existem. Mas, quando abro os olhos, vejo apenas uma.

Um azul fluorescente pisca a poucos metros de mim e meu sangue congela.

Ser observado já é uma experiência desagradável de vulnerabilidade. Ser observado enquanto está desacordado é indescritivelmente pior.

— Lembra do que eu falei sobre tentar fugir? — a voz da Lacuna, carregada de ódio, ecoa na escuridão. Respiro fundo para tentar me acalmar, me arrependendo de imediato ao identificar um odor pútrido no ar ao redor.

A luz branca invade o local após um clique e meus olhos se fecham por instinto para me proteger da mudança brusca de iluminação.

Eu tento não olhar, pois imagino o que esteja em minha frente, mas a curiosidade é maior.

Estou em outro cativeiro agora, ainda menor. A Lacuna, em forma de Rachel, cruza os braços recostando-se na porta atrás de si. Ela me encara fixamente. Aos seus pés, um homem morto estira-se no chão de madeira.

Seu sangue escorre no chão vindo de várias partes do corpo, mas a maioria vem de seu abdômen, que está aberto e vísceras, tripas e carne escapam para fora. Há cortes por toda a sua pele, alguns rasos e outros muito, muito profundos. Ele está nu e teve a garganta cortada tão intensamente que quase foi decapitado. O rosto está virado na minha direção, com a boca aberta escorrendo sangue e as pálpebras arregaladas, mas seus olhos não estão dentro delas.

Percebo também que seus braços e pernas estão retorcidos, os ossos quebrados em diversos locais como um brinquedo infantil cheio de articulações.

Eu o reconheço. É Mason, o antigo colega de Helena. Eu sinto a bile subindo a garganta e me esforço para não vomitar, me virando para o lado oposto e apertando os olhos.

Pelo pouco que já vi da Lacuna, tenho certeza que este homem demorou para morrer. Ela o fez sofrer o máximo que conseguiu antes de acabar com tudo.

Eu já tinha medo de morrer desde que cheguei aqui, mas agora me sinto à beira de uma crise de pânico. Eu fecho os olhos e me vejo em seu lugar, largada nua no chão com meus órgãos escapando da pele. Vejo Helena ajoelhada ao meu lado, me observando naquela situação. Eu choro desesperadamente.

— Está vendo? — os passos da Lacuna vêm até mim e eu me encolho ainda mais, abraçando a mim mesa, escorada no canto da jaula. — Você acha que eu sou burra? Eu escuto tudo.

O que você fez com os outros? — é tudo o que consigo dizer, me esforçando para distinguir as palavras da minha voz embargada.

— Você acha que merece respostas, mas estou sendo piedosa até demais apenas por deixá-la viver. Eu não tolero quem ousa julgar-se mais esperto que eu. Saiba que este foi o meu último ato de benevolência, Sarah — ela exagera no tom formal das frases para me forçar a levar a sério o que ouço vindo de sua boca. — Tente me enganar mais uma vez, e eu farei pior sem hesitar.

Eu me encolho no canto do cômodo e abraço minhas pernas, enterrando o rosto nos joelhos, e choro. Não tento me controlar ou conter, apenas deixo que tudo saia. Meus soluços preenchem o vazio do cativeiro quando a Lacuna sai e tranca a porta, e o salgado das lágrimas mistura-se ao odor de putrefação da morte que me acompanha bem ao lado. As órbitas vazias de seus olhos seguem em minha direção, observando sem observar.

É o pior dos castigos. A morte, de repente, não parece tão terrível assim. Por instinto, eu me coloco no lugar de meu pai há quinze anos. Situações diferentes, mas o mesmo pensamento: agora, não sentir mais nada seria melhor que continuar me sentindo assim.

Eu a odeio por fazer isso comigo. Me arrancar da minha vida pregressa para me transformar em uma peça do seu jogo de tabuleiro em que apenas ela conhece as regras. Me trancar como um animal de fazenda prestes a ser abatido, sendo mentalmente torturado todos os dias por não saber quanto tempo ainda lhe resta.

— O que você quer de mim? — eu murmuro entre os soluços, esperando que ela escute de alguma forma. — O que você quer?

***
As horas se passam e a decomposição do cadáver avança. Ele solta gases, tem espasmos e até faz alguns sons como se ainda estivesse consciente e tentasse gritar por socorro. Sei que são apenas reações normais de um corpo se decompondo, mas ainda assim é terrivelmente assustador.

Eu não consigo deixar de sentir o cheiro da morte nem ao cobrir o nariz. E, mesmo que me vire para os cantos e não o veja diretamente, sei que ainda está ali.

Ao pensar em algo que possa me distrair da tenebrosa realidade, começo a contar os meus fios de cabelo, um por um. Eu me concentro e me esforço para não pensar em mais nada. Tudo some da minha mente.

Quando estou chegando a mil e duzentos, a porta se abre num ranger alto como uma risada de bruxa. Vejo a Lacuna segurando uma xícara de chá e sorrindo para mim com os lábios roubados de Rachel.

— Vejo que está mais calma — diz ela. — Vamos conversar.

A Lacuna entra, fecha a porta atrás de si com a mão livre e faz o caminho contornando o cadáver para vir até mim, a agulha do salto alto fazendo barulho ao tocar no piso de madeira.

— Não quero conversar — respondo com rispidez. — Não com você.

Ela se ajoelha ao meu lado e posiciona a xícara em minha direção. Eu me movo para o canto do cativeiro tentando me afastar dela.

— Eu sei que quer. Você faz muitas perguntas. E eu vim te mostrar as respostas.

— E o que é isso? — questiono indicando a xícara com um aceno de cabeça.

— Só um agrado. É camomila, você deve gostar.

Eu desconfio, mas percebo que estou com tanta sede que beberia qualquer líquido que me oferecessem. Então seguro a xícara com delicadeza e tomo o chá todo em grandes goles. Eu vejo a Lacuna sorrir.

— Estou esperando — comento em seguida. Devolvo a xícara ao chão. — O que você tem a dizer?

Ela joga o cabelo para trás num sutil movimento com a cabeça, ajeitando-o por trás da orelha com as mãos em seguida.

— Eu não vou dizer nada. Você mesma vai ver.

Começo a me sentir tonta e fraca. O ambiente ao meu redor gira e as cores se distorcem, em seguida as formas e até mesmo os sons. Eu preciso me apoiar com as mãos no chão para não me desequilibrar, mesmo que esteja sentada. Eu balanço a cabeça ao redor e encaro a Lacuna furiosa.

Ela me drogou. E foi tão fácil que ela ri, satisfeita.

Ela se aproxima de mim, toca no meu rosto com delicadeza e eu apago, ficando inconsciente até os sonhos chegarem.

A LacunaOnde histórias criam vida. Descubra agora