Rachel Winter termina de escovar os dentes e passa água no rosto com as mãos em concha depois de guardar a escova. Ela observa seu reflexo no espelho e sente-se horrorizada com o tamanho das olheiras abaixo de seus olhos verdes.
Ela está exausta. Arrasta-se pela casa vazia e quieta até seu quarto, desejando, mais uma vez, que vá dormir e não acorde pela manhã. Sabe que não adianta, e todas as vezes ela desperta com o som do alarme, sabendo que mais um dia cansativo precisa ser vivido.
Chegando ao quarto, ela sente-se enjoada pelo cheiro do incenso que acendeu ao chegar em casa, uma falha e desesperada tentativa de limpar as energias ruins de alguma forma. Ela o apaga antes que fique com dor de cabeça. Boceja mais uma vez e prepara-se para deitar na cama de casal em que tem dormido sozinha nos últimos seis meses.
Ela luta com todas as forças que tem para não pensar no divórcio. Ela sabe que o ex-marido não merece uma única menção vindo de sua boca, ou mesmo de sua mente. Ele está feliz com a nova namorada mais jovem na Califórnia. Ele a largou e não merece que ela sequer pense nele.
Mas é tão difícil, e parece piorar a cada segundo. Rachel permanece em pé, com uma ponta do edredom em suas mãos, paralisada, encarando a janela do quarto.
A luz da lua faz com que seja possível ver o amontoado de folhas, ervas daninhas e tralhas que um dia fora seu belo quintal dos fundos. Onde antes havia arbustos minuciosamente podados, flores silvestres que preenchiam o ambiente externo com seu doce aroma e árvores grandes e belas, imponentes, agora parece um parque abandonado pela prefeitura. Algumas tábuas velhas e podres se acumulam perto da cerca, onde um dia foram jogadas por algum motivo e então, esquecidas.
Até mesmo os passarinhos que passavam por ali todos os dias hoje estão sumidos. Nenhum deles quer ficar em um lugar tão mal cuidado.
Foram apenas seis meses, mas o suficiente para que Rachel abandonasse seu amor pela jardinagem. Assim como o amor por si própria. Ambos desapareceram como uma névoa que se dissipa.
Ela permanece olhando pela janela, pensando que deveria fechar a cortina se não quiser acordar com o sol forte em seu rosto no dia seguinte. Rachel suspira, exausta, e faz o contorno pela cama até a janela, fechando as cortinas agressivamente.
Então ela se vira e ouve um barulho sutil, quase imperceptível, de algo batendo na janela. Ela vira o rosto na direção do som, mais intrigada que assustada, e volta até onde estava para abrir a cortina.
Rachel quase sente o coração parar ao ver uma criatura esquelética a encarando do lado de fora. O impulso gélido característico da mistura de susto e medo percorre seu corpo enquanto sua mente tenta assimilar o que os olhos acabaram de enxergar.
Durante poucos segundos, elas se encaram. A criatura sorri, balançando suas unhas metálicas como se estivesse dando um oi à distância. Rachel então anda cambaleando para trás, ainda sem entender se o que vê é real. Ela cai por cima de sua cama e decide correr, mesmo que ela tenha dormido sem perceber e isso seja apenas um sonho. Ela passa por cima do colchão e avança pelo corredor em direção à cozinha. Quer ir até o telefone e ligar para a emergência.
Tropeçando em seus próprios pés pelo piso de madeira, a mulher ouve apenas o ranger causado pelos seus passos. Então ela decide parar e raciocinar.
É claro que não existe um monstro do lado de fora de sua janela. Essas coisas não existem. Rachel avista as caixas de seus remédios antidepressivos jogadas na mesa de centro da sala e se dá conta de que se esqueceu de tomá-los hoje. Ela só pode ter alucinado por alguma espécie de abstinência.
Monstros não existem. Nem demônios, alienígenas ou qualquer coisa do tipo. E ela sabe disso, é uma mulher adulta perfeitamente racional.
Rachel respira fundo, retoma sua calma e senta-se no sofá, tentando parar de tremer. Fecha seus olhos por alguns segundos e novamente a imagem do ex-marido surge na vasta escuridão de sua mente. Ela não aguenta mais. Abre os olhos para que veja qualquer outra coisa e se arrepende no mesmo instante.
Lá está aquilo de novo. Aquela coisa que Rachel acabou de constatar não ser real. O ser esquelético a observa silenciosamente pela grande porta de vidro dos fundos e sorri mais uma vez antes de partí-la sem esforço algum.
Rachel grita enquanto a coisa arrasta-se pelo chão, ou imagina que está gritando, pois não sai som algum de sua garganta. Seu corpo está tão apavorado por inteiro que ela mal consegue se mover. Sua única reação é levantar os braços à frente do rosto para se proteger, mas as unhas afiadas da criatura cortam sua pele sem dificuldade. Agora sim ela grita, pois a dor dos cortes e o sangue que começa a escorrer em gotas doem como algo que ela nunca sentiu. A coisa envolve suas mãos ao redor do pescoço de Rachel e aperta até que ela desmaia.
A jovem moça não acordará mais, assim como tanto desejou ultimamente. Mas, em seus últimos segundos de consciência, ela sente-se arrependida e clama mentalmente por uma chance para continuar sua vida. Ela não terá.
O ser esquelético move seu rosto ao redor do ambiente apenas para checar se está realmente sozinha. Não seria uma tarefa difícil livrar-se de qualquer testemunha que tivesse o azar de cruzar seu caminho, mas ela não quer atrasos em seu plano. Precisa ser rápida pois o tempo está passando, e o que está apenas em sua mente no momento precisa ser colocado em prática.
A coisa arrasta Rachel desacordada até onde imagina ser o porão da casa. Não precisa ligar nenhuma luz pois não enxerga através dela como os humanos, seres tão inferiores. Ela posiciona o corpo da jovem loira de bruços, os braços e pernas estirados, e ajoelha-se ao lado dela. Começa a devorar. Rasga o abdômen com seus dentes e garras, revira a carne e os órgãos, sente o sangue quente enxarcar seus dedos e os leva à boca, deliciando-se de cada segundo. A humana emite alguns sons, mas não acorda de fato. Permanece alheia e indefesa como uma presa deve ser.
Após satisfazer-se de suas vontades, a coisa parte para a próxima etapa. Tateia o rosto da mulher em busca do bem mais precioso que os humanos podem oferecer — seus olhos. Ela passa os dedos nas pálpebras ao redor, sentindo a textura lisa e úmida daqueles órgãos tão valiosos. Um êxtase dos mais prazerosos percorre todo seu corpo ao fazer isto. Então ela posiciona uma das unhas por baixo de uma das pálpebras inferiores e puxa a órbita para fora de sua posição, com uma facilidade profissional de quem já fez aquilo inúmeras vezes.
Apenas um já é necessário. A coisa põe-se de pé e retorna até o andar principal da casa, desbravando o local até encontrar o quarto da humana, onde deve estar tudo, ou quase tudo, que precisa saber sobre ela. A coisa entra no banheiro da suíte e procura pelo interruptor de luz, pois a partir de agora estará sob sua dependência. Então posiciona-se em frente ao espelho e levanta o olho verde que já não é mais capaz de enxergar até o seu crânio, encaixando-o delicadamente na lacuna que existe apenas para essa função. O olho se fixa como se estivesse ali desde sempre, e então o corpo da criatura começado a sofrer alterações físicas imediatamente. As pele azul torna-se branca, as costelas esqueléticas são envolvidas por músculos, bem como braços, pernas e costas. As garras tornam-se unhas delicadas e as presas gigantescas e metálicas se reduzem a dentes brancos clareados artificialmente. O crânio se modifica e torna-se idêntico ao de Rachel, bem como o cabelo que cresce em um piscar de olhos e assume um corte perfeitamente finalizado.
A metamorfose é dolorosa, mas vale cada segundo. A criatura que se transformou em Rachel observa a si própria no espelho e sorri. Passa os olhos pelas curvas, os seios, a clavícula marcada acima deles e se delicia com a visão.
Somente então repara em algo que não deveria ter acontecido — o olho verde de Rachel não mudou de cor. Deveria estar azul assim como o outro que surgiu a partir de nada, mas recusou-se a aceitar sua nova cor. Ela se frustra, mas não pensa nisso por mais muito tempo. No lugar em que ela irá, ninguém saberá que a verdadeira Rachel não tem um dos olhos azuis. E nem descobrirão.
— Não se preocupe, querida — a voz da coisa agora também é idêntica à de Rachel, assim como todo o restante. — Eu farei um bom uso de sua imagem.
A nova Rachel veste-se, separa roupas e outros itens em uma mala. No computador, pesquisa na Internet sobre New Chamor, uma minúscula cidade ao norte do Nebraska. Aproveita para estudar a vida da antiga Rachel e decidir quais traços ela manterá e quais serão descartados. Então ela se livra do corpo, coloca no carro as coisas que separou e sai em uma longa viagem até a cidadezinha que ela agora chamará de lar.
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A Lacuna
HorrorEstar em New Chamor é como viver o mesmo dia todos os dias. A pacata cidadezinha com pouco mais de dois mil habitantes, cercada por florestas, é um paraíso para aqueles que preferem uma vida mais amena. Perto do Natal, o único acontecimento incomum...