O Inimigo Do Tempo

III

Quando a noite caiu, naquela mesma manhã, enrolei na rua, até o ápice do brilho da lua no céu.
Eu poderia até dizer que o motivo de tanta demora era devido minha incessante paixão pelas estrelas, mas por que eu mentiria assim tão cedo?

Vilarejos pequenos carregam dogmas grandes, burburinhos maiores ainda e problemas tão insignificantes que faz alguém como eu estar desocupado em uma noite como hoje, desocupado o suficiente para confirmar minhas dúvidas sobre um possível baile de uma família rica.

Encostei no muro de uma casa, pesado, observando, um a um todos que entravam naquele grande circo, e embora eu sempre me vestisse bem, aquele dia exigia de mim uma roupa mais clássica, que curiosamente, eu estava trajando.

Não pensem que eu planejo meus passos, seria muito precoce, vocês sabem o que eu esperava.

E como é certo que após a noite, chega o dia, é certo também que eu não me engano.

Não demorou para que a garota chegasse, com um olhar tão cínico que doía ver o peito do rapaz que a acompanhava, inclusive, cedo, cedo demais, mas não uma surpresa.

Como meu intuito não era ser o narrador de uma história entre os dois, tão pouco alguém triste que observa ao longe, sentia meu corpo pedindo para que eu participasse, e como não sou lá de recusar, imaginei que fosse realmente o mais divertido. Desta forma, me alonguei até um velho rico, e roubei o convite que ele desleixadamente enfiou no bolso de seu casaco inglês.

Quando entrei no salão, preciso admitir que, até para um cético, me impressionei bastante, tinha uma mesa longa repleta de comida, e o melhor, os vinhos e cachaças, tudo de uma boa qualidade, qualidade essa não comprada por menos de muitas libras.
Não esperei tanto para pegar uma bebida, ok, vou ser sincero, foi a primeira coisa que eu fiz, mas fazer o que, as vezes me deixo levar pelos maus hábitos.

Ao longe pude ver alguém laçar a cintura da jovem de olhar mordaz, e a convidar para dançar, convite que ela recusou com um simples acenar. Me pergunto porque eles ainda tentam, e embora eu saiba da resposta, e tenha ela na ponta da língua, a questionei quando vi minha dama olhar para outro rapaz. Ele não a viu, mas eu sim.

E quando ela, a procura de algo, cruzou o olhar em minha direção, e permaneceu, observando cada detalhe da minha pessoa, como se quisesse arrancar algo de mim, talvez minha roupa, talvez minha alma, dei um passo a frente e ergui levemente a taça que segurava.

Ela sorriu.
Não um sorriso como qualquer outro, um sorriso meu, divertido, prazeroso, convidativo.

E como não sou de recusar convites, deixei minha taça, agora vazia, em cima da grande mesa, e fui de encontro à escolhida, a dona de todos os olhares.

- O tão famoso Duque Ashkore.

Olhei com malícia para a forma como ela falava, enquanto estendia a mão convidativa a uma dança.

- Não imaginei que fosse fazer pesquisas a meu respeito. - Respondi.

- É comum que saibamos de quem não devemos nos aproximar, quando chegamos em uma nova região. Lugares a evitar, pessoas, comidas.

- Está fazendo um péssimo trabalho, então.

- Preferi verificar com meus próprios olhos. - Ela respondeu.

Segurei a cintura dela com um pouco mais de propriedade, e enquanto no piano, alguém tocava a sexta sinfonia de Beethoven, pouco a pouco os olhares passavam por nós, e permaneciam:

- Você está atraindo olhares, senhor. - Ela sorriu, e pude ver um brilho ardente no fundo de seus olhos.

- Talvez seja a companhia agradável que possuo em mãos.

Rodopiei a jovem, pela última vez, antes da música terminar, e embora eu odeie mostrar presença, admito que aquele espetáculozinho me entreteu bastante.

- A propósito, não tive oportunidade de fazer pesquisas sobre você, desta forma, sinta-se a vontade para se apresentar. - Falei.

Ela estreitou os olhos, e suavemente falou:

- Estava ocupado roubando maçãs?

E antes que eu pudesse responder, ela fez uma reverência partindo rumo a mesa de comida, para então encher uma taça com vinho branco.

Ao invés de ir até ela, e dar-lhe a atenção que o âmago de sua alma suplicava, apenas andei rumo a saída, e mesmo sabendo que deixava o paraíso atrás das portas, saí com a certeza de que  ele viria me ofertar muito mais ainda.