— Julia? Meu amor, onde estará você?
Da sombra da noite sua voz me respondeu, calma e contente, pude sentir. O doce som vinha do topo da escada, alegrou-me o coração.— Estou aqui, minha senhora.
Sua tez se iluminou à medida que a escuridão ao nosso redor se dissipou. Era a minha Julia, de corpo e alma. Usava seu lindo roupão de seda escarlate ornado de grandes laços pretos, cuja gola cruzando-se no seio deixava-lhe apenas o colo descoberto. Conseguia me lembrar com precisão da textura macia do tecido em meus dedos. Os cabelos vermelhos soltos chicoteavam o rosto pálido a cada degrau que descia com altivez. Até que chegou em baixo e eu pude contemplar mais uma vez sua beleza visceral.
Senti vontade de chorar ao ver o pescoço dela adornado com o colar de rubis que lhe dei a não muito tempo. Estava encantadora, sem dúvida nasceu para viver como uma rainha, vestida nas mais finas sedas e ornada com as mais ricas jóias.— Foi para mim que se fez tão bonita hoje?
— Para quem mais seria? — ela sorriu e atirou-se aos meus braços como sempre fazia.
Mentia tão bem que colocaria inveja em qualquer demônio. Era um de seus defeitos, ou virtude. Dentre esse e outros mil, o único que me incomodava era a indecisão. Sua inconstância de sentimentos tomavam a paz, perturbavam o meu peito, desaqueitava meus pensamentos. O que era aquela mulher? Uma eterna dúvida.
Senti seu cheiro invadir meu olfato, quando acomodei meu rosto na curva de seu pescoço. Não era a mesma essência adocicada de antes, era diferente. Tinha cheiro de flores frescas. Julia beijou-me nos lábios, serena, mas não senti a sensação arrebatadora de paixão. Era calmaria, brisa e... apenas perfume. Seus braços estavam apoiados em mim, mas não sentia seu peso sob meus ombros.—Está morta, não está?
—Se estou morta quem está lhe abraçando? A tristeza?
— Não minta para mim, meu amor. Está morta, foi o que me disseram.
Julia desapareceu assim como a névoa que cobre a vista às manhãs e se dissipa nos primeiros raios de sol. Estava novamente no jardim de flores mortas da velha baronesa. Clamei por seu nome mas ela já não estava mais lá, apenas o eco ressoando como sinos no jardim. Sinos da igreja. Os sinos tocavam e eu não sabia de onde vinham, tormento, agonia. Fizeram-me recordar da triste realidade, agora acordada de mais um sono terrível. Esses sonhos cruéis têm sido recorrentes ao nascer do sol.
As grandes sensações de dor ou tristeza costumam ocorrer na penumbra da madrugada, horário perigoso aos mortais, mas para mim não, o grande problema sempre foram as manhãs, quando torno-me obsoleta. Não sinto nada, não faço nada, não me movo nem protesto. Mas penso, fantasio e rumino memórias de infância, da noite de outrora, para só então cair-me a ficha.
A morte é uma condição irreparável, me faz lembrar o quanto sou vulnerável, que para morrer basta estar vivo, o que resta da vida são as memórias… o legado. Qual foi o legado de minha amada Júlia? Era bonita, de língua afiada e corajosa, mas as pessoas não lembrariam dela como tal, o que permaneceria era a imagem de prostituta mesquinha. Novamente, não para mim, para mim permaneceria sua imagem no alto da escada, o som de seus passos apressados contra os degraus de madeira, ainda desarrumada com os cabelos cada dia mais vermelhos caídos naquelas bochechas rosadas. Permaneceria seu encantamento, sua generosidade e sua bela voz quando respondia meus chamados com doçura. Agora não poderia chamá-la ou poderia, entretanto jamais ouviria uma resposta novamente.Meus olhos pesados de sono não queriam abrir, também sentia o estômago castigar com a fome. O dia havia clareado novamente, mas os pensamentos não. Continuavam obscuros pensando na noite de ontem. Ou seria antes de ontem? Não saberia dizer. Não conseguia ver mais nada com as janelas fechadas, durmo e choro todas as horas horas desde então. Talvez nem sequer havia amanhecido e o tempo só esteja encoberto da sina de castigar-me com esta agonia. Dispenso as conspirações do pensamento, agarro-me ao material. Sim, amanhecera duas vezes, afinal haviam duas bandejas de desjejum no aparador, todas intocadas. Não sentia fome, tão pouco vontade de levantar para tocá-las. Minhas ideias me alimentavam, deixavam de estômago embrulhado. A realidade era penosa, sobretudo quando me deparo com os acontecimentos longe do luto, Sebastian era o acusado. Não havia dúvidas sobre a injustiça em seu cárcere.
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Alma em fogo
Historical FictionNenhuma metáfora do mundo seria capaz de caracterizar o que se tornara São Paulo de 1808 após receber o convite para uma tríade de assassinatos misteriosos. Entre as vítimas está Julia Margarete, a prostituta por quem a rica e mesquinha Anelise Aign...