Prólogo

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"O passado é um pecúlio para os que já não esperam nada do presente ou do futuro; há ali sensações vivas que preenchem as lacunas de todo o tempo."

– 𝑀𝐴𝐶𝐻𝐴𝐷𝑂 𝐷𝐸 𝐴𝑆𝑆𝐼𝑆

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Eis-me aqui novamente, navegando em direção às terras amaldiçoadas do Brasil, numa cabine escura e um tanto minúscula de um velho galeão espanhol, enquanto minhas mãos suam frio ao segurar a pena que insiste em vazar tinta preta do tinteiro. Alguns raios do sol da tarde penetram pelas frestas da parede de madeira. Uma fina camada de suor se acumula na minha testa. Essas malditas camadas de roupas necessárias para sobreviver ao frio da Europa se tornaram um incômodo desnecessário agora. Sempre digo que há um motivo pelo qual esse clima dos trópicos latinos é desesperadoramente quente: é uma prévia cruel do inferno.

A brisa do mar bate em meus cabelos curtos e desarrumados, ao insistir em entrar pela pequena janela quebrada. Não se pode brigar com o vento. Já devo ter mencionado que Jeane amava meus cabelos longos, dizia que lembravam-no de uma noite sombria, e ele gostava de noites sombrias. Digo isso porque me lembro do senhor ter dito a mesma coisa anos atrás. Já faz um tempo que não me importo mais em arrumá-los em elaborados penteados adornados com penas e pérolas. Apenas os cortei na altura dos ombros, um antigo desejo que havia esquecido de realizar anteriormente. Da mesma janela de onde vem a brisa com cheiro de maresia, posso observar as montanhas se aproximando cada vez mais. Uma visão que tiraria o fôlego de qualquer um que não tivesse sérios problemas com esse solo. Não culpo a terra que abrigou meus pais em sua juventude desatinada, quando decidiram fugir da Espanha para se unirem em matrimônio no Rio de Janeiro. Entretanto, culpo os malditos portugueses por terem dado início à colonização e, pela crueldade do destino, me fazerem estar aqui.

Passaram-se três cruéis meses desde que embarquei em Lisboa, e não houve um único dia em que não tenha pensado na possibilidade de me jogar no mar e esperar que os monstros marítimos que os marinheiros relatam tenham a bondade de devorar as amargas carnes do meu corpo. Então, lembro-me da possibilidade de sobrevivência dessa opção, afinal Jonas sobreviveu no estômago de uma baleia. Opto, então, por uma morte mais lenta, continuar vivendo até minha hora chegar, e finalmente não haverá mais escapatória. Se eu tivesse o poder de escolher minha vida, escolheria morrer hoje. Perdoe-me, meu amigo, pelo tom mórbido das minhas palavras. Entretanto, são as mais sinceras que posso expressar neste momento. Peço perdão também por este longo relato, detalhando meus cabelos e o vento. Estou experimentando escrever cartas com um estilo excessivamente detalhado. Ouvi dizer que agora é a nova maneira favorita dos franceses de escrever livros, e pelo que sei, o senhor deve estar escrevendo seu mais novo romance neste momento. Oh, perdão, estava me desviando novamente. Estou um tanto nostálgica hoje, lembrando dos tempos cruéis em São Paulo. Recordo-me de zombar da dramaticidade dos estudantes poetas, inclusive de sua melancolia, hoje me usufruo dela para me expressar.

Quando me enviaste aquela carta clamando por explicações concretas sobre o que havia acontecido no passado, pensei algumas centenas de vezes antes de responder. Não, não por medo, pois sabes que não tenho medo de mais nada. Apenas tenho receio de revisitar meu passado e perceber que cometi os mesmos erros de outrora. Meu querido amigo, sei que estiveste ansioso nestes dias e hoje, na Bahia de São Salvador, na terra segura longe do oceano, finalmente posso descrever a verdade. Afinal, não tenho mais o risco de me jogar em mar aberto após escrever a carta. Sei que não me vês como uma mulher frágil e emotiva, mas algumas coisas mudaram desde nosso último e trágico encontro. Espero que me compreendas como sempre o fizeste. Tenho tido dias angustiantes. Talvez tenha realmente me precipitado ao decidir viver pelo amor. Dez anos se passaram e a dor do arrependimento e da tristeza ainda continuam aqui, mais vivas do que eu. Não deveria sentir que já não caibo em lugar algum. Na verdade, não deveria sentir-me paralisada pela confusão dentro de mim. Não me recordo bem de como me tornei uma pessoa amarga, mas me lembro de quando me apaixonei por Julia Margarete Cameron. E que ela me perdoe, onde quer que esteja, por essa analogia, mas a perdição da minha vida começou ao fixar meus olhos nela.

Gostaria de responder à sua primeira pergunta, aquela que me fizeste antes das outras. Claro, ainda há um resquício de amor por Julia, um resquício ínfimo que não pode mais ser despertado longe das boas memórias do saudosismo. E sobre se um dia voltarei a amar novamente, posso afirmar com convicção que não viverei o suficiente para presenciar esse milagre divino. Agora, falando do que interessa, perdoe-me pelo sentimentalismo barato. Essa história que tanto queres saber começa no ano de 1808, há 15 anos, antes de amar a guerrilha acima de qualquer coisa, antes de defender a Espanha com meu sangue, antes mesmo de enviuvar durante minha breve estadia nas terras orientais. Enquanto ainda era uma burguesa soberba, filha de imigrantes espanhóis, que atendia pelo falecido nome de Anelise, cegamente apaixonada por uma mulher morta e meus dias se resumiam a tediosa São Paulo, por volta de dezembro, ou melhor dizendo, o último mês em que não implorei pela morte.

Espero que esteja preparado para receber uma quantidade exagerada de cartas, afinal, as histórias de uma vida inteira não cabem em um único papel. Meu tinteiro está cheio, e minha pena continua funcionando, mesmo após as centenas de palavras que já escrevi com ela. Meus dedos estão doloridos e corroídos pela pólvora, mas é um sacrifício que faço em nome de sua honrosa amizade.

De sua intragável amiga, A.

Alma em fogoOnde histórias criam vida. Descubra agora