"As chamas se intensificavam no interior da casa, a chuva fraca chiando ao cair nos caibros carbonizados e nas colunas abrasadas. O telhado ruíra há algum tempo, espalhando um turbilhão de fagulhas e centelhas no céu escuro, como se um milhar de vaga-lumes vermelhos e alaranjados rondassem frenéticos a noite ao redor do fogo. A porta de entrada era um portal para um inferno onde uma família inteira fora consumida pelo calor sufocante até virar esculturas sinistras de carvão. Corpos retalhados, perfurados e chamuscados se espalhavam pela grama e pela rua de terra batida em frente às ruínas ardentes. E vocês percebem que, apesar de seus esforços para conter John Olho-Infernal e seus capangas, o vilarejo inteiro está queimando" narrou Isabel no lado esquerdo da mesa de vidro, por cima da barreira estilizada que escondia informações do jogo.
— Gente, algum de vocês tem magia de cura ou alguma poção sobrando? Tunok está, literalmente, com zero pontos de vida — interrompeu Felipe, segurando a ficha de seu personagem com uma expressão receosa.
— Eu acho que ainda tenho um espaço de magia para te curar — respondeu Júlio, folheando a própria ficha em busca de uma confirmação.
— Bah! Feito! Fico te devendo uma! — animou-se Felipe, aliviado, rosqueando a tampa do refrigerante para se servir de mais um copo.
Enquanto isso, à sua direita na grande mesa quadrada, separada dele apenas pelo canto levemente arredondado do vidro espesso, Anne encarava o celular com o cenho franzido em uma profunda preocupação. Felipe a admirou por alguns segundos até perceber as bochechas ficando quentes, e então seus olhos castanhos dardejaram da amiga para o restante do grupo, certificando-se de que nenhum deles notou o modo como a encarava. Apesar de temer que ela e os demais já suspeitassem de seus sentimentos, o desenhista industrial ainda tentava debilmente escondê-los. A cor escura da pele de Anne e o modo como a luz refletia nela, especialmente a luz natural, o encantava de um modo que não sabia descrever. Poderia passar horas admirando as linhas do rosto e o volumosos cachos pretos sempre bem-cuidados, mas olhar para a boca de lábios volumosos era um convite ao perigo, pois sua garganta secava e seu peito queimava com um forte desejo de beijá-la. E, apesar de a mulher nunca ter falado nada, Felipe tinha certeza de que ela o via apenas como um amigo.
Porém, em contraste com os pensamentos apaixonados de Felipe, os olhos inteligentes e perspicazes de Anne mostravam um misto de perturbação e medo; sentimentos esses que se mostraram presentes em sua voz quando perguntou:
— Gente, vocês viram os stories da Kátia?
— Que Kátia? — Isabel franziu as sobrancelhas loiras.
Arthur, que estava à direita de Anne, enrugou o cenho e esticou o pescoço para observar a tela do celular dela. Os olhos verdes se semicerraram em confusão enquanto a mente tentava entender o que via. Curioso, Felipe pegou seu próprio aparelho e acessou suas redes sociais.
— Ela estudou com a gente no ensino médio antes de se mudar para o colégio do Arthur e do Felipe, lembra? Cabelo meio emo, vestia casaco até no verão, tava sempre usando umas lentes pra fingir que os olhos eram claros e odiava metade do colégio — relembrou Anne, gesticulando para ilustrar as características de Kátia.
Os olhos cor de mel de Isa se arregalaram com um brilho de reconhecimento antes de ela os revirar e bufar.
— Tu ainda segue aquela vaca?
Estranhando a reação da amiga, Anne replicou perplexa:
— Sigo, ué... tu não?
Isa resfolegou em escárnio, cuspindo toda sua antipatia pela mulher.
— É claro que não! Ela sabia que eu era apaixonada pela Rafaela e foi lá pegar a guria do mesmo jeito. E aposto que foi só de birra por eu não ter convidado ela para a minha equipe profissional de League of Legends!
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O Cavalo Pálido na Chuva - Volume 1
Horror⚠Versão Atualizada⚠ Talvez se Anne e seus amigos soubessem o que estava por vir, não teriam escolhido passar suas últimas horas jogando RPG. Agora eles são obrigados a sobreviver à brutalidade nua e crua de uma sociedade em decadência andando a pass...